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Document Dump ou Infobesidade: Os Limites à Ampla Defesa e ao Contraditório no Processo Administrativo Sancionador

Soraya Nouira y Maurity

Imagine a seguinte situação: em um processo administrativo sancionador instaurado para apurar supostas irregularidades cometidas por um determinado servidor ou empregado público, a Comissão responsável pela instrução do processo acosta aos autos centenas de documentos, divididos em múltiplos volumes, com CDs que contêm milhares de páginas escaneadas, planilhas cripticamente organizadas em softwares complexos e uma infinidade de pareceres técnicos, fotos, diligências, informações, atos normativos e outros elementos probatórios. De imediato, o servidor investigado se sente perdido: por onde começar? Será possível, em prazo hábil (que, geralmente, nas legislações de cada ente público, varia entre cinco a quinze dias), destrinchar todo aquele emaranhado de informações para elaborar uma defesa consistente?

Essa prática, conhecida como document dump ou infobesidade, ilustra o fenômeno abordado neste texto e revela como o excesso de informações, longe de fortalecer o processo, pode prejudicar a compreensão dos fatos e inviabilizar o contraditório e a ampla defesa.

A expressão document dump (literalmente, despejo de documentos) tem origem no direito estrangeiro, sendo mais comum em processos penais, mas sua essência pode ser perfeitamente aplicada aos processos administrativos sancionadores. Também aqui o excesso desordenado de documentos pode comprometer as garantias de ampla defesa e contraditório, sobretudo nos casos em que não há defesa técnica do servidor (cf. Enunciado nº 05, da Súmula Vinculante do STF[1]).

À primeira vista, pode parecer uma forma de conferir maior robustez à instrução processual, mas, na prática, quando realizada de maneira desordenada e sem critérios claros, essa estratégia tende mais a obscurecer do que a esclarecer os fatos. O principal prejudicado é o investigado ou suspeito, que, para exercer seu direito de defesa de forma plena e efetiva, necessita não apenas de acesso ao conteúdo probatório, mas de tempo razoável para analisar cada detalhe com a profundidade necessária, conforme assegurado pelo art. 5º, inc. LIV e LV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88).

A consequência imediata é o desequilíbrio entre as partes. Enquanto o órgão acusador (um ministério, uma agência reguladora, uma corregedoria ou outro ente público) dispõe de equipes multidisciplinares e recursos tecnológicos avançados para manusear dados técnicos, o servidor investigado, em regra, conta com um aparato muito mais modesto. Isso gera uma clara assimetria de armas em prejuízo à ampla defesa e contraditório.

De fato, a garantia do contraditório exige não só que as partes tenham ciência de todas as provas produzidas, mas também que lhes seja permitido compreender o significado desses elementos para, então, refutá-los, corroborá-los ou contextualizá-los de forma efetiva. A mera possibilidade formal de “ter acesso” aos autos não atende, materialmente, às garantias constitucionais.

Veja-se que o próprio regime jurídico-administrativo brasileiro exige que a Administração, ao exercer seu poder-dever de apurar condutas potencialmente ilícitas e impor sanções, atue pautada no interesse público, promovendo as garantias fundamentais legal e constitucionalmente estabelecidas. Sendo assim, a prática do document dump prejudica a ideia de razoabilidade como equidade, a proporcionalidade, a finalidade e a motivação dos atos administrativos. Afinal, se a finalidade desses atos consiste na busca pela verdade dos fatos, essa missão é gravemente prejudicada quando a instrução probatória carece de clareza e objetividade, dificultando não apenas a análise dos elementos de prova pelo investigado, mas também a própria compreensão do caso por quem irá decidir ao final do processo. Além disso, a motivação do ato administrativo – que deve refletir uma relação lógica entre os fatos apurados e a decisão final – também se vê enfraquecida diante da sobrecarga documental, pelo que a multiplicidade desordenada de informações pode mascarar inconsistências, ocultar lacunas probatórias e comprometer a fundamentação da sanção imposta. A distorção vai de encontro, portanto, aos artigos 2º e 50, § 1º, da Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99), que exigem que a prática de atos administrativos sejam fundamentados, de forma explícita, clara e congruente, garantindo transparência e racionalidade na tomada de decisões.

É bem verdade que o document dump não é a única prática prejudicial às garantias de ampla defesa e contraditório. Além do document dump, existem outras estratégias que igualmente podem comprometer a possibilidade de uma defesa efetiva. A chamada fishing expedition, por exemplo, caracteriza-se pela busca desordenada de quaisquer documentos ou informações em uma tentativa generalizada de encontrar algo que sustente a acusação, ainda que não exista, de início, correlação clara com os fatos investigados. Já o lawfare consiste no uso instrumentalizado e abusivo de ações judiciais ou administrativas para enfraquecer ou desmoralizar um adversário, transformando os mecanismos jurídicos em armas de perseguição política ou pessoal.

É preciso, portanto, buscar um ponto ótimo ou satissuficiente[2] entre uma instrução probatória robusta para a toma de decisão administrativa e a necessidade de garantir a efetividade da ampla defesa. Assim, algumas soluções podem ser exploradas para mitigar os impactos dessa prática e assegurar um contraditório efetivo. Em primeiro lugar, seria possível admitir, à luz da ampla defesa, a dilação de prazos nos casos em que a comissão processante reconheça a necessidade de um tempo adicional para que o acusado analise o acervo documental de forma adequada. Essa solução não se limitaria a um benefício processual circunstancial, mas poderia ser fundamentada na ideia mais ampla de uma derrogação excepcional de regras rígidas, quando estas se tornarem um entrave ao direito de defesa.

Em segundo lugar, pode-se argumentar que o acusado teria o direito de exigir da Administração Pública que os documentos probatórios lhe fossem apresentados de maneira organizada, indexada e acessível, de forma a garantir que o exercício da defesa não seja inviabilizado pela dispersão e pela complexidade documental. Essa exigência encontraria respaldo nos deveres da Administração Pública quanto à eficiência e à transparência na condução do processo sancionador.

Em terceiro lugar, outro ponto relevante seria a possibilidade de um reequilíbrio no uso dos instrumentos probatórios. Ainda que o ônus da prova continue recaindo sobre a comissão processante, caberia à defesa utilizar, dentro de parâmetros razoáveis, a própria estrutura técnico-pericial da Administração Pública para examinar e contrapor as provas produzidas contra si. Esse mecanismo garante que o acusado possa se valer dos mesmos meios técnicos e organizacionais disponíveis à Administração para estruturar sua defesa de maneira adequada. Essa proposta contribuiria para reforçar a isonomia processual e evitar que a complexidade do acervo probatório se tornasse, na prática, um obstáculo intransponível ao exercício da defesa.

O ponto central, portanto, é reconhecer que as garantias do contraditório e da ampla defesa não podem ser consideradas como atendidas sob uma perspectiva meramente formal. Se a Administração Pública detém o poder de acusar, deve também garantir que esse poder não se transforme em uma barreira insuperável para o acusado.


[1] “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.”

[2] O termo “satissuficiente” remete à teoria da satisficing (Simon, 1956), segundo a qual, para a tomada de decisões, deve-ser buscar soluções “satisfatórias” ou “adequadas” em vez de ideais ou ótimas, especialmente em contextos de incerteza e recursos limitados. O termo foi originalmente cunhado pelo economista Herbert Simon. Em vez de tentar encontrar a melhor solução possível (maximização), satisficing envolve buscar uma solução que seja “boa o suficiente” para atingir um objetivo mínimo ou um padrão aceitável.