Publicações

A Lei nº 14.879/2024 e as restrições à eleição de foro

A Lei nº 14.879/2024 e as restrições à eleição de foro

No último dia 05 de junho, foi publicada a Lei nº 14.879/2024, que “altera a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício”. 

A Lei alterou a redação do §1º do art. 63 do CPC, para adicionar, dentre os requisitos para a eleição de foro, a necessidade de pertinência entre o foro eleito e o “domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação”, ressalvada a pactuação consumerista quando favorável ao consumidor. Além disso, incluiu um quinto parágrafo ao dispositivo legal, para dispor que “o ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício”

Da leitura da Justificativa do PL nº 1.803/2023, de autoria do Deputado Federal Rafael Prudente, é possível identificar duas preocupações centrais do legislador, quais sejam (i) a coibição do abuso do direito quando da eleição de foro pelos contratantes, e (ii) a sobrecarga do Poder Judiciário, em especial dos tribunais que “não guardam pertinência com o caso em deslinde”, com vistas a não prejudicar a sociedade local. O Deputado relata, a título de exemplo, a experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que recebe enorme quantidade de ações decorrentes de eleição de foro, mesmo sem qualquer relação com o negócio jurídico celebrado ou com as partes. 

A tendência de aumento da utilização de cláusulas de eleição de foro, segundo o Deputado Federal, vem sendo facilitada pela modernização tecnológica. De fato, em razão da implementação e consolidação do processo eletrônico [1], da possibilidade de escolha do Juízo 100% Digital e da utilização dos balcões virtuais, a eleição de foros diversos é possibilidade cada vez mais fácil e simplificada.  

A inovação legislativa, contudo, pode restringir demasiadamente a liberdade de eleição de foro, indo contra os influxos de flexibilização e consensualidade que se espraiaram não apenas em matéria de eleição de foro, mas também sobre todo o sistema de regras processuais [2]. Principalmente em razão dessa limitação excessiva à liberdade contratual, a mudança foi objeto de duras críticas, tanto durante a tramitação do processo legislativo, como após a sua publicação. 

Certamente, a matéria ensejará discussões relevantes também no âmbito do Poder Judiciário, bem como atrairá a necessidade de maior cautela quando da elaboração dos instrumentos contratuais. 

Para que os objetivos de coibição do abuso de direito enunciados pelo legislador sejam alcançados, no entanto, é importante que tais debates levem em consideração outros direitos e garantias fundamentais, tendo como ponto de partida uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico.  

 Esperamos, assim, que o exame dos novos requisitos para a eleição de foro pelos Tribunais pátrios seja pautado sob a ótica da liberdade contratual, de modo que não haja supressão total e indiscriminada de outros critérios de escolha igualmente merecedores de tutela pelo ordenamento. A abusividade incluída no §5º do art. 63 do CPC também demanda uma interpretação restritiva, em respeito ao direito a uma prestação jurisdicional adequada (art. 5º, XXXV, da CRFB). Afinal, a declinação de ofício poderá gerar, na prática, prejuízos àquele que busca repelir lesão ou ameaça de lesão a direito. 

_________________ 

[1] Segundo dados do “Justiça em Números”, apenas 0,4% dos novos processos ingressaram fisicamente no ano de 2023 (CNJ. Relatório Justiça em Números. 2024. p. 236 Disponível em <https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/> . Acesso em 05.06.2024. 

[2] Segundo Gajardoni e Zufelato, “a moderna ênfase que se dá ao aspecto eficacial do processo (no seu aspecto  material  e  temporal),  sugestiona  que  se  deva  conferir  ao  procedimento  o  ritmo necessário à efetiva atuação jurisdicional”, seja por meio da adaptação do processo ao seu objeto e sujeitos no plano legislativo, seja no âmbito do próprio processo para realizar a adequação de forma concreta (Gajardoni, F. da F., & Zufelato, C. (2020). Flexibilização e combinação de procedimentos no Sistema Processual Civil Brasileiro. Revista Eletrônica De Direito Processual, 21(3). https://doi.org/10.12957/redp.2020.54201). Especificamente quanto à eleição de foro, o próprio STF já havia sedimentado o entendimento, traduzido no Enunciado de Súmula nº 335/STF, de que “é válida a cláusula de eleição de fôro para os processos oriundos do contrato”.