Por Alice Voronoff e Juliana Bonacorsi de Palma
Artigo publicado originalmente na coluna Fumus Boni Iuris do portal O Globo.
A legalidade é sem dúvida um dos princípios mais badalados e controversos nas prosas jurídicas. Não que se duvide de sua importância para o Estado Democrático de Direito. Mas em alguns campos, seu sentido e alcance ainda estão sujeitos a um enorme grau de incompreensão. Este artigo busca justamente provocar reflexões sobre o sentido da legalidade no direito administrativo sancionador. Em uma pergunta: a experiência prática pode trazer alguma ordem de limitação ao poder de o Estado punir? E nada melhor do que fazê-lo a partir de problemas hipotéticos, numa espécie de convite ao leitor para que teste suas convicções. A eles.
Problema n. 1: caso do cachorro no parque. Na cidade Feliz, há um belo parque municipal no qual uma placa avisa: “Proibida a entrada de animais. Infração sujeita a multa administrativa”. Felícia se mudou para a cidade Feliz há cerca de 3 anos e passou a morar em um apartamento com vista para o parque. Desde então, observa que muitas pessoas frequentam o parque com seus bichinhos de estimação e, curiosa, resolveu perguntar aos usuários se já haviam sido multados. Todos responderam negativamente e frisaram que isso jamais ocorreria porque a cidade Feliz seria historicamente um lugar amigo dos animais. Mais segura, Felícia comprou um cãozinho e resolveu passear com o novo amigo no parque. Qual não foi a surpresa quando, alguns dias depois, recebeu uma notificação de infração para que pagasse multa por desobedecer à proibição constante da lei municipal de ordenação dos parques urbanos. Pergunta-se: é legítimo o auto de infração lavrado contra Felícia?
Problema n. 2: caso da mudança de interpretação. A empresa Eficiente celebrou contrato de PPP com o município Moralidade, na modalidade de concessão administrativa, para construir e administrar determinado hospital municipal. De acordo com o contrato, a concessionária está sujeita à aplicação de multa sempre que for constatada fila de espera para internações com 10 ou mais pacientes por pelo menos 3 vezes no mesmo mês. Diz o contrato, contudo, que a penalidade deixará de ser aplicada nos casos de aumentos de demanda gerados por surtos virais classificados como graves. Assim foi que, no ano de 2010, verificado o gatilho contratual por conta de um surto de gripe, a empresa Eficiente deixou de ser punida com base na cláusula de exceção prevista no contrato. Em 2015, deflagrado novo gatilho de demanda em razão de um surto de gastroenterite, a empresa mais uma vez invocou a exceção contratual e não foi sancionada. Mas em 2020, após um aumento exponencial da demanda hospitalar em razão de novo surto de gripe, o pedido de aplicação da exceção foi rejeitado. Segundo o ente municipal, o conceito de “surto viral grave” seria indeterminado e, por isso, passível de reinterpretação no tempo. Logo, à luz do conhecimento científico mais recente, haveria elementos para se retirar a gripe da categoria de virose grave. No máximo, de gravidade média. Por conseguinte, se imporia a aplicação da penalidade contratual.
Problema n. 3: caso do prefeito expansivo. No município da Alegria, Seu João montou uma pequena lanchonete para incrementar a renda familiar. Ele sabia que, de acordo com as normas de ocupação do solo urbano, não poderia colocar mesas e cadeiras nas calçadas para servir sua clientela. Mas desde que o prefeito Felicidade assumiu o comando do Poder Executivo, passou a dizer publicamente que tais regras seriam contrárias aos interesses da população. Afinal, as mesinhas expandiriam os espaços de lazer da cidade e todos ganhariam em bem-estar. Incentivado pelas declarações públicas do prefeito, Seu João colocou 5 mesinhas em frente à sua lanchonete, como o fizeram outros comerciantes. Quatro anos depois, contudo, recebeu diversas autuações da Secretaria Municipal da Ordem Pública pelo descumprimento flagrante da legislação vigente. Perplexo, Seu João procurou o ex-prefeito para resolver esse absurdo, mas não teve sucesso. Segundo Felicidade, as regras seriam válidas e nunca teriam sido revogadas ou anuladas, apesar de considerá-las de mau gosto.
São três casos que podem ser resolvidos à luz da legalidade. Mas dependendo do sentido que se atribua ao princípio, as respostas serão diametralmente opostas.
No sentido formal, de uma legalidade positivada, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João devem ser sancionados. Trata-se da aplicação da legislação tomada como uma fotografia: a imagem estática daquilo que consta dos códigos. A isso se poderia adicionar um argumento de autoridade: a natureza vinculada da atividade sancionatória da Administração Pública. Descumprida a regra formal, cabe ao administrador aplicar a consequência prevista no comando jurídico, sob pena de prevaricar. Isso, frise-se, independentemente de comparações com casos ou momentos diversos.
Já se o leitor trilhar pela legalidade material — i.e., a legalidade enquanto juridicidade, como vinculação ao ordenamento jurídico, incluindo a normatividade constitucional —, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João não podem ser sancionados. Nos três casos, porque o comportamento da Administração Pública não pode ser ignorado. Como num filme, ele importa. Mais do que isso, ele integra o sentido de legalidade. No primeiro caso, a omissão da prefeitura por um tempo considerável criou em Felícia a percepção de que entrar com animaizinhos no parque era a regra na cidade Feliz, e não o contrário. Como ela poderia pensar de modo diverso, se ao longo de pelo menos três anos todos os seus vizinhos e frequentadores levaram seus cães, gatos e bichinhos ao parque? No segundo caso, a empresa Eficiente tinha exemplos de situações pretéritas vivenciadas ao longo da execução contratual em que o Poder Concedente claramente manifestou seu entendimento a propósito dos surtos virais, incluindo os de gripe. Poderia ela ser surpreendida com a sanção em situação análoga, sob o pretexto de aplicação de um entendimento até então jamais externalizado pela Administração Pública? No terceiro caso, as declarações públicas do chefe do Poder Executivo, seguidas do apoio das autoridades à ocupação das calçadas, gerou em Seu João a convicção de que a proibição teria sido superada. Pode-se afirmar que ele agiu de má-fé, com a intenção de descumprir as regras de ocupação do espaço urbano?
Enfim, a questão é saber se há resposta certa a cada um desses problemas, ou se a beleza do Direito consiste justamente na pluralidade de raciocínios legítimos que possam ser desenvolvidos. A nosso ver, há resposta certa: apenas o sentido material de legalidade resolve legitimamente tais casos. É que não há legalidade possível sem previsibilidade. O poder de punir da Administração Pública pressupõe que os particulares conheçam com clareza as condutas que lhe são vedadas ou exigidas. E isso não se verifica nas três situações hipotéticas analisadas. Seja pelo costume de o Poder Público tolerar o descumprimento da lei, na primeira delas; pela mudança de interpretação, na segunda; pelas declarações públicas de cunho orientativo, na terceira. A verdade é que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João foram legitimamente induzidos a acreditar que se comportavam em conformidade com o ordenamento jurídico.
Apenas o sentido material da legalidade considera a realidade. E há muitas formas de a Administração Pública — a maior intérprete do Direito — modificar o mundo dos fatos: práticas, costumes, precedentes, orientações, tolerâncias, decisões, atos de execução material, omissões etc. Leis, decretos e regulamentos são documentos com textos escritos. Sem se conectarem com a realidade, nada são. A norma jurídica é a interpretação que se confere ao texto normativo diante de uma situação concreta, que também compreende as várias expressões da Administração Pública.
Ao levar seu cachorro ao parque, Felícia cumpriu com a norma de admitir cachorros no parque fruto da tolerância das autoridades públicas, embora o texto legal os proibisse. A empresa Eficiente cumpriu com a norma de compreender “surto viral grave” conforme decisões pretéritas do Poder Público. Seu João cumpriu à risca as orientações do ex-prefeito Feliz, chefe do Poder Executivo e com hierarquia na interpretação normativa. Esses são todos exemplos de conformidade. Por isso afirmar com tanta ênfase que a legalidade formal não foi recepcionada no Direito Administrativo Sancionador, apesar de esta ideia ainda ser forte na cultura jurídica brasileira, levando ao exercício sistemático do poder sancionador de modo ilegítimo e teratológico.
Em rigor, os casos hipotéticos acima sequer são difíceis. Há problemas um tanto mais complexos com os quais se preocupar no direito. Otimizemos nossas energias.