A Lei nº 8.429/1992, chamada Lei de Improbidade Administrativa, estabelece o regime de responsabilização de agentes públicos e privados por atos de improbidade. Após quase 30 anos, a sua redação foi alterada pela Lei nº 14.230/2021, que trouxe aspectos importantes, em especial quanto ao elemento subjetivo da responsabilização.
Neste artigo, analisamos as alterações feitas à Lei de Improbidade Administrativa quanto à responsabilização de dirigentes de empresas privadas que contratam com a Administração Pública, sob a ótica do Direito Administrativo Sancionador.
I. As alterações à Lei de Improbidade Administrativa em prol de um regime mais garantista
O regime de responsabilização por improbidade administrativa estabelecido pela Lei nº 8.429/1992 visa tutelar a probidade na organização do Estado e no exercício das funções públicas, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social (cf. art. 1º, da LIA, na redação atribuída pela Lei nº 14.230/2021). Trata-se de concretização do comando constitucional de moralidade administrativa (art. 37, caput, da CRFB), cujas consequências foram expressamente previstas no art. 37, §4º, da CRFB.
É fora de dúvida que a proteção dos direitos e interesses difusos e coletivos previstos na Constituição justifica uma postura firme dos legitimados para a propositura da ação de improbidade. Mas disso não se extrai um aval para todo e qualquer tipo de investida. Há condições, limites e cautelas necessários, sobretudo porque o mero ajuizamento dessa ação importa em efeitos extremamente gravosos para aqueles que são demandados. Ser réu em ação de improbidade é per se uma pecha1 e as medidas cautelares e sanções passíveis de serem aplicadas são bastante severas.2 É dizer: justifica-se um olhar mais garantista, voltado a evitar e combater excessos, incongruências, desvios de finalidade e injustiças.3 Até porque tais distorções, ao final, geram consequências maléficas não apenas para os réus da ação de improbidade, mas para o bom exercício da função pública.4
Passadas quase três décadas de vigência da LIA, as preocupações quanto à definição de um regime mais criterioso para a improbidade culminaram na edição da Lei nº 14.230/2021, que promoveu uma ampla reforma na Lei nº 8.429/1992. O propósito foi robustecer a tutela de direitos e garantias fundamentais e promover maior segurança jurídica a gestores públicos e terceiros. Foi assim que, a partir da Lei de 2021, o legislador deixou expresso, por exemplo, que se aplicam “ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador” (art. 1º, §4º), justificando a incidência de um regime jurídico mais protetivo, pautado diretamente pelos princípios e garantias fundamentais extraídos da Constituição.
Assim é que o exercício da pretensão punitiva deverá ocorrer em estrita consonância com o princípio da legalidade, sob o viés da tipicidade (5º, II e XXXIX, e 37, caput da CRFB); com as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIII, LIV e LV, da CRFB); e com outros princípios materiais igualmente relevantes, como os da culpabilidade e da pessoalidade da sanção (art. 5º, XLV, CRFB); da individualização da sanção (art. 5º, XLVI, CRFB); e da razoabilidade e da proporcionalidade (extraídos da cláusulas do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal, em sua dimensão material, cf. arts. 1º e 5º, LIV, CRFB).5
II. A responsabilização de sócios e administradores de empresas à luz da Lei de Improbidade Administrativa
Em coerência com o espírito garantista da Constituição e com o objetivo de evitar o ajuizamento de ações temerárias, desprovidas de justa causa, uma importante alteração promovida pela Lei nº 14.230/2021 foi a inclusão de parâmetros mais rígidos para a responsabilização de dirigentes, sócios e administradores de empresas privadas que figurem no polo passivo de ações de improbidade administrativa.
Como regra geral, sócios e administradores não respondem diretamente por infrações imputáveis à pessoa jurídica contratada pela Administração Pública. Não se pode confundir o ato de uma pessoa jurídica com a pessoa física que age em nome dele. Segundo o art. 49-A do Código Civil, a pessoa jurídica não se confunde com seus sócios, associados, instituidores ou administradores.6 A pessoa física, nesses casos, tem a função primordial de corporificar a sociedade, executar a vontade social, e, quando atua regularmente no âmbito de seu poder de gestão,7 não deve responder civil ou administrativamente, salvo nos casos em que a legislação assim impuser de forma expressa.
As hipóteses excepcionais de superação dessa regra – quando será possível atingir o patrimônio pessoal dos sócios e administradores – remetem à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity),8 disciplinado no art. 50 do Código Civil9 e no incidente previsto nos arts. 133 e seguintes do Código de Processo Civil. O objetivo do instituto é buscar o equilíbrio entre, de um lado, a autonomia da pessoa jurídica e, de outro, a proteção da sociedade contra o seu uso indevido.10 Por meio desse instituto, a responsabilidade pessoal dos administradores é imputada apenas quando houver indícios de irregularidade na administração da pessoa jurídica, seja por desvio de finalidade (isto é, o uso da pessoa jurídica para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos, abusivos ou fraudulentos),11 seja por confusão patrimonial.12 Quando não comprovadas tais circunstâncias, a responsabilidade recairá, única e exclusivamente, sobre a pessoa jurídica que cometeu a conduta que se conclua ilícita.
No caso da Lei de Improbidade Administrativa, a redação original do art. 3º da Lei nº 8.429/1992 estabelecia que a LIA também seria aplicável àquele que, “mesmo não sendo agente público, induz[isse] ou concorr[esse] para a prática do ato de improbidade ou dele se benefici[asse] sob qualquer forma direta ou indireta”.13 Conquanto o dispositivo não fizesse distinção entre a pessoa jurídica que concorresse com o ato de improbidade e a pessoa física de seus colaboradores, fato é que a jurisprudência, guiada pela noção geral da segregação das personalidades jurídicas e pelos princípios do direito administrativo sancionador, já impunha standards mais robustos para a condenação de particulares pessoas físicas, exigindo a comprovação de percepção de benefícios que ultrapassassem a esfera patrimonial da sociedade empresária e a individualização da conduta.14
Com a nova redação trazida pela Lei nº 14.230/21, o regime de responsabilização pessoal desses dirigentes passou a ser ainda mais específico e exigente, acrescentando parâmetros relevantes para que pessoas físicas (que não sejam agentes públicos) figurem no polo passivo de uma ação de improbidade. O caput do art. 3º, em sua nova redação, estabelece que será aplicável o regime de improbidade administrativa àquele que “induza ou concorra dolosamente para a prática do ato” (g.n.). Em seguida, o § 1º estabelece que sócios, cotistas, diretores e colaboradores respondem pelo ato que venha a ser imputado à pessoa jurídica “se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação” (g.n.).15 Além disso, para a desconsideração da pessoa jurídica, deverão ser observadas as regras sobre o incidente estabelecidas nos arts. 133 e seguintes do Código de Processo Civil (cf. art. 17, §15, com redação atribuída pela Lei nº 14.230/21).16
Daí se extrai uma diretriz de grande relevância em relação a terceiros que agem em nome de pessoas jurídicas, e a quem porventura sejam imputados atos de improbidade: a regra é a segregação das esferas de responsabilidade. A responsabilização pessoal dos dirigentes é excepcional. Nesse sentido, consoante disciplina legal da LIA em sua atual redação – aplicável às ações em curso sem trânsito em julgado17 –, os colaboradores da pessoa jurídica somente poderão ser incluídos no polo passivo da ação de improbidade quando cumpridos, cumulativamente, quatro requisitos: (i) existência de dolo específico, tendo em vista as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 no sentido da exclusão da modalidade culposa de improbidade administrativa;18 (ii) comprovação de participação direta no ato; (iii) auferimento de benefícios diretos; e (iv) individualização da conduta, uma vez que a responsabilidade deve observar os estritos limites da participação do agente.
A necessidade de comprovação de que o agente teve participação direta no ato e que dele auferiu benefício direto impõem um ônus adicional a quem ajuíza e a quem julga a ação de improbidade. Para fins de responsabilização pessoal, a posição ocupada pelo dirigente não gera presunção de participação no ato19 e de auferimento de benefícios indevidos.20
Portanto, a responsabilização por improbidade administrativa exige o exame das complexas relações existentes dentro da estrutura empresarial para se verificar, de modo concreto, se a conduta individualizada do agente levou à prática do ato ímprobo e se desse ato decorreu, para o dirigente, um benefício pessoal. Na ausência de tais requisitos, a responsabilização pessoal de sócios e diretores será inviável.