Unasul de novo? E o Congresso nessa história?

Por Nicolau Maldonado.

Artigo publicado originalmente no portal ConJur.

Em 6 abril de 2023, foi publicado o Decreto nº 11.475/2023, que promulga o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (Unasul). De novo. O tratado foi celebrado pelo Brasil em 2008, chancelado pelo Decreto Legislativo nº 159/2011 e promulgado pelo de nº 7.667/2012.

Em 2019, entretanto, em meio a uma mudança de rumos da política externa brasileira, o decreto de promulgação foi expressamente revogado pelo de nº 10.086/2019, o que foi questionado na ADI nº 6.544 por falta de prévia autorização do Congresso.

Deixando de lado a discussão sobre o mérito da reabilitação da Unasul — retomada de prestígio ou necromancia decorativa? —, o novo episódio da tramitação é mais uma oportunidade de debater o rito da internalização de tratados no direito brasileiro e suas consequências. Dessa vez, não houve nova deliberação legislativa quanto ao reingresso na Unasul. O decreto de 2023 elenca em seus consideranda o decreto legislativo de 2011, o mesmo que consentiu à primeira promulgação em 2012.

Afinal, quais os papéis reservados pela Constituição à Presidência da República e ao Congresso na celebração de tratados pelo Brasil? Qual a validade dos atos executivos que promulgaram, revogaram e promulgaram de novo o instrumento constitutivo da Unasul? E qual seu status de vigência hoje?

O rito de internalização de tratados, em suma

A Constituição foi econômica ao dispor sobre as competências do legislativo e executivo na celebração de tratados. Ao presidente cabe, privativamente, “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional” (artigo 84, VIII, CRFB). Ao Congresso, exclusivamente, “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (artigo 49, I, CRFB). Os regimentos internos pouco densificam o tratamento constitucional. De mais significativo, o da Câmara dispõe que pode ser de urgência a tramitação de mensagens do executivo que versem sobre tratados (artigo 151, j)) e o do Senado faculta ao seu presidente conferir competência terminativa a comissões na apreciação de tratado (artigo 91, § 1º, I).

Com base nesses lacônicos dispositivos, hoje o rito de internalização tem natureza preponderantemente costumeira. Em síntese, a regra é que, após a assinatura de um tratado ad referendum do Congresso, o presidente da República envie uma mensagem à Câmara dos Deputados com o texto do instrumento assinado acompanhada de exposição de motivos. Cabe o asterisco de que o envio da mensagem é ato discricionário da Presidência.

Recebida a mensagem, o presidente da Câmara designa as comissões de tramitação. No percurso, é formulado um projeto de decreto legislativo, que é submetido à votação no Plenário. Aprovado, o projeto é remetido ao Senado, onde é lido em Plenário e despachado pela Presidência da Casa. Em geral, é deliberado na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e levado à votação em Plenário. A priori, as votações são tomadas em maioria simples. Ao fim da tramitação, o presidente do Senado promulga o decreto legislativo autorizando a ratificação do tratado pelo executivo.

A promulgação interna da norma se perfaz na forma de decreto editado pela Presidência da República. Dentre as múltiplas interpretações sobre a natureza desse ato, domina a visão de que ele confere vigência ao tratado no Direito brasileiro. Esses são, abreviadamente, os passos do rito de internalização de tratados no direito brasileiro. Há algumas variações (como a que envolve tratados de direitos humanos ou acordos executivos), porém a breve exposição basta para situar os imbróglios levantados pelo ingresso, saída e reentrada do Brasil na Unasul.

Ruído das vontades na internalização do tratado constitutivo da Unasul

No caso da internalização do Tratado Constitutivo da Unasul, se levantam duas controvérsias. Primeiro: seria necessária autorização do Congresso para a denúncia (a “rescisão”) do tratado pelo Executivo, tal como se requer para ratificação do instrumento? Segundo: seria necessária nova autorização do Congresso para a nova ratificação do tratado constitutivo da Unasul?

No Direito brasileiro, quem representa o Brasil perante outros estados e conduz a negociação, celebração, emenda e denúncia de tratados é o presidente da República. E quem “resolve definitivamente” sobre os tratados “que acarretem encargos ou compromissos gravosos” é o Congresso Nacional. Trata-se de ato subjetivamente complexo, para o qual são necessárias as vontades do legislativo e executivo federais. Mas qual ato? A locução “resolver definitivamente” não explica se a vontade do Congresso é exigida apenas para a celebração ou também para a denúncia de tratados pela presidência.

Não há resposta óbvia sobre a validade da revogação da primeira promulgação em 2019, consubstanciando internamente a denúncia ao tratado constitutivo da Unasul sem participação legislativa. A ADI nº 6.544 enquadra os principais argumentos pela invalidade, de que a denúncia é uma expressão volitiva que necessitaria de “resolução definitiva” parlamentar, inclusive porque no Brasil tratados são equiparados a leis, o que vedaria sua revogação unilateral pelo executivo. Também incidiria o paralelismo das formas, impondo-se para a extinção da norma o mesmo procedimento que a criou.

Na prática, as denúncias de tratados não são levadas ao Congresso. Mas prática não necessariamente é norma jurídica. Considerando que o rito de internalização de tratados é ordenado pela Constituição, e não por normas internacionais, é na Carta Magna que estarão suas regras. Posto isso, a dicção constitucional não parece distinguir se o crivo legislativo é necessário para ratificação ou denúncia de tratado pelo executivo.

Tal crivo envolve a definitividade da decisão sobre o tratado e se essa decisão carrega encargos ou compromissos gravosos. Por certo, a denúncia se encaixa no critério da definitividade, já que é o ato que termina o vínculo do Estado ao instrumento. Quanto à dificuldade em qualificar encargos ou compromissos gravosos, uma métrica básica seria verificar como se qualificou a adesão ao instrumento. Se a ratificação foi qualificada com encargo ou compromisso gravoso, a denúncia, via de regra, também deveria ser.

Quanto à controvérsia sobre a nova promulgação do Tratado Constitutivo da Unasul, o debate é menos avançado. De partida, vale ponderar que a autorização legislativa de 2011 não expira e nem obriga a Presidência à ratificação do tratado. Sua publicação faculta ao presidente da República promulgar o instrumento. Discricionariamente, quando conveniente. Se o Decreto de 2023 fosse a primeira promulgação, com base no aceite legislativo de 2011, não haveria celeuma. Acontece que existiu uma primeira promulgação em 2012, uma denúncia em 2019 e agora há uma segunda promulgação.

A perplexidade está expressa no Requerimento de Informação nº 785/2023, apresentado por deputado federal (e ainda não aprovado) para que o chanceler explique por que a nova adesão não passou pelo parlamento, considerando a denúncia anterior. É preciso de antemão dizer que eventual invalidade do decreto de 2019 ou sua revogação não atingiriam o ato internacional da denúncia. Consta que ele obedeceu aos procedimentos internacionais e, portanto, não pode ser desfeito com a anulação do ato interno que revogou a promulgação. Uma “repristinação” do decreto de 2012 não teria efeitos internacionais, e era mesmo necessário percorrer novamente o iter internacional de ratificação. Não seria preciso também um novo decreto legislativo?

A resposta pode estar nos “encargos e compromissos gravosos” referendados pelo decreto legislativo de 2011. Em sendo o mesmo tratado com o mesmo texto daquele já consentido pelo parlamento, em tese, os ônus são também os mesmos. A vontade legislativa já assentiu a esses mesmos ônus e não foi alterada. Esses fatores soam suficientes para sugerir uma desnecessidade de novo decreto legislativo.

Por outro lado, tampouco soa absurdo defender a imprescindibilidade de uma nova validação parlamentar. É que, além da vagueza da redação constitucional na definição de “encargos e compromisso gravosos” (que historicamente favorece a participação legislativa na internalização de tratados), é estranho que não seja aberta janela de reflexão ao Congresso sobre as diferentes posturas adotadas pelo Brasil em relação à Unasul nos últimos anos. Jeito ou outro, é preciso evoluir o debate.

Algumas considerações prospectivas

O percurso da internalização do tratado, um tanto turbulento, traz a oportunidade de discutir e aperfeiçoar esse procedimento constitucional, até por suas feições costumeiras. Quanto à denúncia de tratados, caso o STF não entenda pela perda de objeto da ADI nº 6.544 (uma saída possível em vista do retorno à Unasul), seria muito proveitosa uma decisão judicial sobre o papel parlamentar nesse procedimento. Os argumentos postos parecem indicar a necessidade de permissão do legislativo, mas, qualquer o desfecho, ao menos se teria uma orientação institucional mais firme do que a existente hoje.

Quanto à função do Congresso na segunda ratificação do tratado, a situação é mais incerta. Quem sabe o Requerimento de Informação nº 785/2023 seja uma opção para rascunhar alguma orientação institucional. Ou talvez seja uma proposição destinada às gavetas. Sem manchetes à vista, a política aparentemente acomodou a questão e não se imagina uma intensificação da controvérsia.

Aos olhos do direito internacional, a nova ratificação basta para que a Unasul possa ter vida própria. No direito brasileiro, a vigência do tratado é sustentada pela presunção de legitimidade do decreto de 2023. Naturalmente, a celeuma jurídica subsiste, dormente até uma outra ocasião, como também aquela avidez por respostas típica aos juristas mais curiosos.

Remédio e Veneno nas Redes Sociais

Por Gustavo Binenbojm

Texto publicado originalmente no portal O Globo.

O Projeto de Lei 2.630/2020, aprovado no Senado, tramita na Câmara dos Deputados em regime de urgência e caminha a passos largos para possível aprovação. Os ataques às sedes dos Poderes em 8 de janeiro, urdidos livremente nas plataformas digitais, e os crimes bárbaros contra escolas, viralizados em grupos de mensagens, precipitaram a agenda do Parlamento brasileiro no enfrentamento de questões sobre as quais o mundo está debruçado. Não são triviais, nem há uma bala de prata redentora. As soluções propostas apresentam trade-offs claros que precisam ser sopesados antes da decisão final.

Foi-se o tempo em que teóricos da comunicação, como Manuel Castells ou Eugênio Bucci, acreditavam na neutralidade das redes. Sabe-se hoje que algoritmos sofisticados interferem decisivamente no que vamos ler, ver e ouvir, induzindo comportamentos de consumo e posturas existenciais mais amplas. A curadoria de conteúdos está longe de equiparar-se a uma varredura desinteressada sobre o mérito das discussões. Exclui ou enfatiza pontos de vista que potencializam a capacidade da plataforma de atrair atenção e, por conseguinte, gerar lucros. Por fim, os conteúdos impulsionados mediante pagamento e campanhas maciças de desinformação, promoção de ódio, violência e ataques à democracia colocam em xeque o modelo de negócios baseado na pura autorregulação privada. Ela parece ter falhado ou, ao menos, revelou-se insuficiente.

O debate na Câmara, sob a relatoria do deputado Orlando Silva, amadureceu em relação ao travado no Senado. Em vez de investir no conceito de fake news — de resto, inglório, já que poderia resvalar para um monopólio da verdade —, o PL define com a precisão possível uma lista de conteúdos ilícitos. As plataformas passam a ter um dever de cuidado quanto ao conteúdo postado por terceiros. Se envolver violação a direitos de crianças e adolescentes, devem agir de ofício. Quanto aos demais, devem adotar as providências cabíveis quando notificadas, o que pode chegar à remoção do conteúdo (notice and take down). Na moderação, as redes devem justificar suas ações, como por que algumas mensagens são censuradas e outras não, com base em razões legais ou fundadas nos termos de uso. Os usuários têm direito a um devido processo legal, com os meios e recursos a ele inerentes. Relatórios semestrais devem ser publicados prestando conta à sociedade da atividade de curatela realizada pelas plataformas, a fim de que ela seja transparente, isonômica e possa ser reprogramada.

Numa decisão sábia, o relator retirou do PL a criação de um ente regulador. Além do vício de iniciativa evidente — porque o PL é de origem parlamentar —, criar uma agência para normatizar, fiscalizar e sancionar nesse campo pode ser um tiro no pé da democracia. É desejável conceder um poder normativo amplo a um ente administrativo para construir e ampliar conceitos tão delicados como desinformação ou notícia fraudulenta? Juristas não podem ignorar a História e as lições do passado, para que o remédio não vire veneno.

Boas práticas de governança corporativa e a legitimidade ativa dos acionistas minoritários

Por Francisco Defanti, Joana Nabuco e Filipe Seixo.

Artigo publicado originalmente no portal Migalhas.

Boas práticas de governança corporativa buscam estabelecer um sistema por meio do qual empresas são dirigidas, monitoradas e incentivadas com o objetivo de “preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum”1.

A fiscalização dos atos de acionistas controladores por acionistas minoritários desempenha um papel fundamental na criação desses sistemas. Segundo os Princípios da OCDE sobre Governança Corporativa, a legitimidade ativa de acionistas minoritários para ajuizar ações judiciais em nome da companhia, inclusive em face de acionistas controladores, é uma das formas de garantir seus direitos e de coibir o abuso do poder de controle2. No Brasil, esse direito é garantido por meio do art. 246 da lei 6.404/1976 (“LSA.”).

Uma questão societária altamente relevante envolve a interpretação da regra contida no dispositivo, cujo caput estabelece que a sociedade controladora é obrigada a reparar os danos que causar à companhia por atos praticados com abuso de poder. Já o §1º – que traz o ponto de maior questionamento – dispõe sobre a legitimidade ativa para deflagração dessa ação de responsabilidade, nos seguintes termos: 

“Art. 246. (…)
§ 1º A ação para haver reparação cabe:
a) a acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social;
b) a qualquer acionista, desde que preste caução pelas custas e honorários de advogado devidos no caso de vir a ação ser julgada improcedente. (…)”

A dúvida hermenêutica gira em torno da operacionalização dessa ação de responsabilização movida pelos acionistas minoritários da Companhia. De forma concreta, discute-se sobre a necessidade ou não de prévia aprovação da assembleia geral da Companhia para que os acionistas minoritários – nas hipóteses das alíneas “a” e “b” do dispositivo – possam deflagrar a ação (em uma aplicação analógica da exigência prevista no art. 159 da LSA). Controverte-se, também, sobre os efeitos de eventual ação manejada posteriormente pela Companhia em relação à demanda anterior dos minoritários.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça se deparou com essas questões ao analisar conflito entre dois procedimentos arbitrais – o primeiro instaurado por acionistas minoritários da Companhia em face de seus controladores, atuando em nome da S.A. com fulcro no art. 246 da LSA3; o segundo deflagrado anos mais tarde pela própria Companhia, também em face de seus controladores ex-administradores, com fulcro no art. 246 e 159 da LSA, respectivamente.

Em interpretação contrária à literalidade do dispositivo, o STJ decidiu pela prevalência do procedimento iniciado pela Companhia, com a consequente extinção do primeiro processo (de autoria dos minoritários), por entender que a ação do art. 246 da LSA dependeria de prévia autorização assemblear. Ao fazê-lo, contudo, acabou por esvaziar o sentido do dispositivo e restringir o direito fundamental de fiscalização dos acionistas minoritários, na contramão das boas práticas de governança corporativa e do movimento ESG, que vêm ganhando força mundo afora.

Há, ainda, outro fator recente que precisa ser considerado nessa discussão. É que, em 28/2/23, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) -competente para regular o mercado de capitais – manifestou-se formalmente sobre os seguintes pontos suscitados por acionistas minoritários: (i) se a realização de prévia deliberação assemblear seria requisito para a propositura de ação por parte de minoritários da companhia; e (ii) se a propositura posterior de ação de reparação de danos pela Companhia geraria a extinção automática da ação deflagrada anteriormente pelos acionistas minoritários4.

Quanto ao primeiro ponto, o voto do Diretor João Accioly traçou uma importante análise interpretativa da LSA. Conforme demonstrado, diferentemente da hipótese específica disciplinada pelo 159 da LSA (que trata da ação de responsabilidade civil contra o administrador e exige expressamente “prévia deliberação da assembléia-geral”), o art. 246, §1º da lei não traz qualquer exigência de prévia aprovação assemblear. Não houve omissão alguma do legislador: nesse caso, quis-se atribuir maior legitimidade para atuação dos acionistas minoritários.

Como bem pontuado pelo Diretor João Accioly, “se a ação compete aos acionistas titulares de percentual mínimo, ou a qualquer um que caucione os custos de sua possível sucumbência, a ação cabe a eles e ponto final.” Em suma, não há necessidade de se complementar o dispositivo da lei com regras específicas de outro dispositivo: o legislador foi claro e delimitou com precisão os requisitos e exigências aplicáveis à ação objeto do art. 246 da LSA.

Na verdade, conforme destacado pela CVM, o propósito da lei é evitar que o controlador influencie a formação da vontade social e impossibilite (ou dificulte) a deflagração da competente ação de responsabilidade civil pelos minoritários. Há aqui, inclusive, uma preocupação consequencialista legítima externada pela autarquia: a restrição do escopo da norma tem o potencial de trazer mais obscuridade e insegurança na sua aplicação. Afinal, nas palavras do Presidente da CVM, João Pedro Nascimento, tal exigência “pode acabar por prejudicar o delicado equilíbrio de incentivos que o legislador teve em mente ao criar um sistema de responsabilidade efetivo.”

A CVM também discorda da conclusão de que a ação prévia dos minoritários precisa ser extinta em razão do advento posterior de demanda formulada pela Companhia. Segundo ressaltado por seu Presidente, o “sistema de responsabilidade seria bastante prejudicado caso se entendesse que a ação de responsabilidade anterior contra os controladores ajuizada pelos acionistas minoritários seria automaticamente extinta assim que interposta a mesma ação pela companhia.” Com efeito, não há lógica processual em se extinguir a primeira ação. Como bem pontuado pelo Relator Diretor João Accioly, a situação deveria ser resolvida ou por reconhecimento de litispendência (com a extinção da ação que se iniciou depois, e não antes), ou pela reunião dos processos.

Vale, por fim, trazer a seguinte conclusão apresentada pelo Diretor João Accioly em seu voto:

“199. Pelo contrário, como demonstrado nos tópicos anteriores, há uma série de características pelas quais tal solução se revela inadequada: ela é oposta às finalidades da lei (de buscar efetiva responsabilização por eventuais abusos), prejudicial aos interesses da coletividade dos acionistas (e portanto incompatível com a interpretação pela negociação ideal – CC, art. 113, §1º, V), vedada pela lei societária ainda que estabelecida em cláusula estatutária (por elidir de instrumento assecuratório de direito, LSA, art. 109, §2º), e reputada nula pelo direito das obrigações ainda que expressamente prevista em qualquer contrato (por sujeitar direito subjetivo a condição puramente potestativa, CC, art. 122); tantas e tamanhas incompatibilidades parecem explicar a ausência de paralelo a tal regra no direito positivo, por mais remota que seja a analogia.”

Enfim, as instâncias são independentes, mas a lógica é uma só. E não há como ignorar a interpretação qualificada de quem, no ordenamento jurídico brasileiro, tem a específica capacidade institucional para regular o mercado de capitais e interpretar a LSA. Que os influxos da CVM sejam devidamente considerados nas discussões judiciais pertinentes à correta interpretação da sistemática do art. 246 da LSA. São diversos os ganhos dessa postura dialógica: além de se resgatar a relevância dos direitos dos minoritários assegurados pela LSA e a higidez do mercado de capitais de forma mais ampla, fortalecem-se as boas práticas de governança corporativa. Assim em linha com as mais recentes preocupações de ESG que se espraiam mundo afora, para as quais o Brasil não pode fechar os olhos.


1 INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=21138. Acesso em: 20/04/2023. P. 20.

2 OCDE. G20/OECD Principles of Corporate Governance. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/g20-oecd-principles-of-corporate-governance_5js09wmjzz45.pdf?itemId=%2Fcontent%2Fpublication%2F9789264236882-en&mimeType=pdf. Acesso em: 20/04/2023.

3 https://www.infomoney.com.br/mercados/minoritarios-criticam-termos-do-acordo-para-encerrar-arbitragem-entre-jbs-jbss3-e-jf/. Acesso em: 25/04/2023.

4 Trata-se do Processo Administrativo CVM SEI nº 19957.007423/2021-12. Os votos mencionados nestes trabalhos estão disponíveis no seguinte link: https://conteudo.cvm.gov.br/decisoes/2023/20230228_R1.html. Acesso em: 20/04/2023.

A carência de capacitação dos Municípios para conceber e gerenciar projetos de licitação

Por Liz Guidini e Sophia Guimarães

Recentemente, foi divulgado o adiamento da entrada em vigor da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/2021), sobretudo em atendimento aos pleitos de Municípios que reclamavam do prazo de adaptação para o novo regime3, apesar de a sua publicação ter ocorrido há mais de dois anos. Tal notícia traz consigo uma reflexão sobre a capacitação desses entes federativos para gerenciar contratações públicas de maior complexidade, bem como sobre as possíveis medidas que podem ser adotadas para mitigar as dificuldades enfrentadas nas contratações em âmbitos local e regional. 

Quando se fala em contratações públicas de grande porte no nosso país, é possível perceber que o assunto tende a ficar concentrado nos projetos de iniciativa da União e de unidades da federação com maior PIB4. Os Municípios, em sua maioria, se encarregam de contratações de menor complexidade. É um reflexo da desigualdade regional. Em muitos casos, há dificuldades para o levantamento dos investimentos iniciais por esses entes subnacionais. Em outros, ainda que haja recursos, falta capacitação dos servidores para a concepção do projeto, desde a fase interna – que demanda estudos técnicos e jurídicos para a elaboração do edital – até as providências necessárias para o gerenciamento dos parceiros privados após a celebração do contrato. 

Essas dificuldades vêm inspirando iniciativas para o desenvolvimento de programas de fomento que têm o objetivo de trazer esses entes subnacionais a exercer maior protagonismo gerencial. O Programa de Parceria de Investimentos (“PPI”), e.g., tem exercido esse papel por meio de plataformas que visam prestar apoio logístico e intelectual para a contratação de serviços públicos que competem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. O objetivo é prestar ajuda técnica e operacional a esses entes na concepção e estruturação de projetos de parceria. 

Um exemplo recente de contratação feita a partir dessa plataforma ocorreu no setor de saneamento básico, com a publicação, de forma inédita, de um edital conjunto entre a Caixa Econômica Federal e o BNDES, em parceria com a Secretaria Especial do PPI5, que tinha por objeto concessões de manejo de resíduos sólidos urbanos. O edital de chamamento público foi destinado a Municípios, consórcios públicos e outros arranjos regionais. Por meio dele, a Caixa e o BNDES abriram a oportunidade para que os entes públicos apresentassem propostas para atuar na estruturação e no desenvolvimento de projetos. Ou seja, aqueles que tivessem interesse em formalizar uma futura parceria com o setor privado – para promover melhoria dos serviços de manejo dos resíduos sólidos – poderiam apresentar os documentos de habilitação necessários no âmbito do chamamento, demonstrando, assim, o desejo de obter o apoio técnico disponibilizado pelas instituições financeiras6. A CEF e o BNDES, nesse arranjo, exercem a função de “agentes estruturadores”. 

A partir das propostas apresentadas, esses agentes realizam, inicialmente, uma análise de vantajosidade para verificar se eventual concessão apresentaria melhor custo-benefício do que a gestão dos serviços de saneamento de forma direta, pelos próprios entes públicos habilitados no chamamento. Para as hipóteses em que a parceria se revele vantajosa, os agentes estruturadores usam seus recursos7 para custear a modelagem da concessão, a partir de estudos jurídicos, de viabilidade técnica e financeira. Além disso, no âmbito desse chamamento, há fornecimento de apoio aos entes na elaboração das minutas de edital e contrato, na definição das tarifas, na formulação de consultas públicas e na realização da própria licitação. Na prática, a Caixa e o BNDES funcionam como uma plataforma, realizando a estruturação dos projetos e conectando as duas ‘pontas’ da relação, isto é, os agentes públicos e privados.  

Como dito, além do apoio técnico, o modelo também contém incentivos de ordem financeira. Isso porque os Estados, Municípios ou outros arranjos regionais (que, nesse cenário, serão os eventuais contratantes públicos) não assumem obrigação imediata de desembolso de recursos. Na verdade, o próprio edital publicado pela Caixa e pelo BNDES já previu que, em caso de sucesso do projeto de concessão, o contratante pode atribuir ao licitante vencedor da futura concessão a responsabilidade de reembolsar os agentes estruturadores pelos custos com a consultoria prestada.  

A partir desse exemplo recente e de outros que se utilizaram de modelos semelhantes e apresentaram resultados positivos8, é possível perceber que, em relação a boa parte dos entes subnacionais, há uma carência de capacitação para a concepção de projetos a ser suprida. E o adiamento da entrada em vigor da nova Lei de Licitações, pleiteado pelos Municípios, é prova de que essa carência atinge contratações de complexidade e natureza diversas, inclusive as mais simples.  

Por esses motivos, arranjos criativos, a exemplo dessa dinâmica pré-contratual que vem sendo fomentada pelo PPI, podem representar boas oportunidades de viabilizar parcerias com o setor privado que, apesar de necessárias, não teriam condições de serem construídas em âmbito local/regional sem o auxílio de instituições com a devida expertise. Além dos auxílios financeiro, técnico e operacional, esse tipo de parceria pode ser visto pelos investidores como uma chancela da viabilidade financeira do projeto, incrementando a concorrência entre os parceiros privados. E o valor agregado dessa experiência para as Administrações Públicas locais é inestimável. 

Direito e Agenda ESG: panorama regulatório e perspectivas para o futuro

Joana Nabuco 

Este é o primeiro de uma série de textos que pretende abordar o tema da Agenda ESG sob uma perspectiva jurídica. A sigla é a junção das letras das palavras environmental, social and governance, ou governança socioambiental, em português. O termo ganhou projeção em 2020, quando, Larry Fink – CEO da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo – afirmou que riscos ESG passariam a integrar suas decisões de investimento. Segundo ele, essa é a chave para garantir a rentabilidade a longo prazo. 

O conceito foi cunhado em 2004 pelo Pacto Global da Organização das Nações Unidas (“ONU”) em estudo desenvolvido em parceria com representantes de diversas instituições financeiras.1 O relatório concluiu que empresas que têm um bom desempenho segundo critérios ESG gerenciam melhor os seus riscos e antecipam ações regulatórias, agregando mais valor aos seus acionistas e aumentando sua competitividade em um mercado global. Também contribuem para o desenvolvimento sustentável dos lugares em que operam e para a resiliência do mercado financeiro. 

A partir disso, é possível entender o que é, de fato, o ESG: trata-se de uma ferramenta de gestão de riscos. Empresas que incorporam critérios ESG às suas práticas mitigam riscos financeiros e não financeiros, incluindo riscos regulatórios e reputacionais, ganhando acesso facilitado a crédito, reduzindo sua volatilidade e aumentando sua longevidade. Por esse motivo, o ponto de partida para o desenvolvimento de uma estratégia ESG são os riscos envolvidos em determinada operação. O risco de vazamento de dados sensíveis é maior no contexto de uma empresa de tecnologia e do que no contexto da indústria extrativa, assim como o risco de litígio climático é maior para essa última do que para a primeira.  

Portanto, não é possível listar de modo exaustivo um rol mínimo de medidas que devam ser observadas por todas as empresas. O conceito-chave para compreender o ESG é a materialidade: deve-se identificar quais questões são mais relevantes em determinado contexto operacional (aquelas que são questões materiais) e priorizá-las. A materialidade varia a depender do perfil da empresa, indústria, local de operação, entre outros fatores. 

A origem do termo também mostra que as discussões sobre ESG foram impulsionadas pelo mercado financeiro. Dada a influência que as instituições financeiras exercem sobre organizações que recebem financiamento, as buscas pelo termo exponenciaram desde a carta do da BlackRock.2 Empresas iniciaram uma “corrida para o topo”, buscando se destacar junto a consumidores e investidores, e outras áreas também passaram a desenvolver soluções para problemas ESG.  

O Direito é um instrumento relevante nesse cenário, uma vez que viabiliza o mapeamento de riscos regulatórios e o desenvolvimento de estratégias de mitigação. De acordo com a rede dos Princípios para o Investimento Responsável (“PRI”),3 apenas em 2021, 225 mudanças regulatórias foram observadas nas 50 maiores economias do mundo incentivando investidores a considerarem fatores ESG.4 O número mais do que dobrou em relação ao ano anterior, o que demanda um esforço contínuo de adequação e aprimoramento de práticas empresariais ligadas à agenda. 

Além disso, muitas das soluções para problemas ESG se situam em vácuos regulatórios ou até mesmo esbarram em algum tipo de vedação legal. Nesses casos, o uso de ferramentas como o sandbox regulatório pode fomentar a introdução de inovações aos marcos regulatórios vigentes como forma de viabilizar a consecução de objetivos ESG.  

Este texto apresentará um panorama regulatório sobre temas dentro da agenda ESG que vêm sendo objeto de debates no Brasil, com algumas perspectivas para o futuro. Os temas são: (i) mercado de capitais; (ii) finanças sustentáveis; (iii) devida diligência em direitos humanos; (iv) mercado de carbono; (v) concessões florestais; e (vi) economia circular. 

Regulação ESG e o mercado de capitais 

Em janeiro de 2023, entrou em vigor a Resolução nº 59/2021 da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), que instituiu um novo regime de divulgação de informações ESG pelas companhias abertas. O modelo adotado pelo novo marco foi o “pratique ou explique”, isto é, demanda que as companhias apenas prestem informações sobre as suas práticas ESG e que justifiquem o porquê de adotar (ou não) determinada medida. Com isso, o objetivo da resolução foi garantir maior transparência ao mercado de capitais e fornecer informações mais claras e padronizadas a acionistas e investidores. 

Trata-se de um passo importante em matéria de regulação ESG no mercado de capitais. Os primeiros formulários divulgados com base na Resolução nº 59/21 revelarão dados relevantes sobre o grau de maturidade do mercado de capitais brasileiro em relação ao ESG e apontará novos caminhos regulatórios. A partir disso, espera-se que a CVM continue trabalhando para ampliar e aprimorar a regulação sobre o tema. 

Finanças sustentáveis 

O Banco Central do Brasil vem aprimorando a regulação bancária em matéria de ESG. O Edital de Consulta Pública nº 85 divulgou um conjunto de propostas normativas para o aprimoramento (i) da gestão de riscos sociais, ambientais e climáticos; e (ii) dos requisitos a serem observados do desenvolvimento de Políticas de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC). Como resultado, foram editadas cinco resoluções estabelecendo regras e respectivos prazos de adequação aplicáveis às instituições enquadradas nos diferentes segmentos do sistema financeiro nacional.5   

A obrigação de publicar uma PRSAC que incorpore riscos sociais, ambientais e climáticos é uma obrigação de reporte, não havendo uma obrigação de adoção de medidas específicas. Espera-se, com isso, que o aprimoramento das práticas ESG seja alcançado como resultado da inserção de determinados temas no processo de prestação de contas de certas instituições. Assim como no mercado de capitais, uma análise dessas políticas permitirá a identificação de padrões e a adoção de novas medidas regulatórias. 

Devida Diligência em Direitos Humanos 

O principal marco normativo internacional que destrincha a responsabilidade de empresas por abusos de direitos humanos são os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos (POs). Segundo os POs, empresas têm a responsabilidade de respeitar direitos humanos. Isso inclui a responsabilidade de implementar processos de devida diligência para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas sobre como lidam com impactos adversos sobre os direitos humanos e o meio ambiente, reais e potenciais, que possam ter relação com as suas operações. 

A despeito de ser um instrumento de soft law, os POs vêm inspirando diversos países ao redor do mundo a adotar medidas que tornem obrigatória a devida diligência em direitos humanos, como foi o caso da França e da Austrália. No Brasil, o Projeto de Lei nº 572/2022, em trâmite da Câmara dos Deputados, pretende instituir um marco regulatório sobre empresas e direitos humanos, o que inclui a obrigação de realizar a devida diligência. O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, já declarou que a aprovação do marco será uma prioridade do seu mandato, o que indica que os debates sobre o assunto devem se intensificar nos próximos anos. 

Mercado de carbono 

O Decreto nº 11.075/2022 regulamentou alguns aspectos da Lei nº 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (“PNMC”). Em linhas gerais, o decreto determina que os planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas – previstos no art. 11, parágrafo único, da PNMC6 – deverão estabelecer metas gradativas, mensuráveis e identificáveis para a redução de emissões e remoção de gases de efeito estufa (“GEE”). Determina, ainda, que agentes econômicos regulados têm o prazo de 180 dias, prorrogáveis por igual período, para apresentar sua proposta de curva de redução de emissões de GEE.  

Ainda existem muitos aspectos pendentes de regulamentação – o decreto não estabelece, por exemplo, quais são as metas de redução para cada setor –, mas o decreto cria as bases do que será o mercado de carbono regulado no Brasil. No Fórum de Davos, a ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva, afirmou que está trabalhando na regulamentação do mercado de carbono, de modo que a pauta deve se tornar prioritária nos próximos anos. 

Concessões florestais 

No final do ano passado foi aprovada a Medida Provisória nº 1.151/2022 (“MP”), que permitiu a comercialização de créditos de carbono e de outros serviços ambientais prestados em florestas naturais e em unidades de conservação, antes proibida. Com isso, a MP buscou tornar mais atrativas as concessões florestais e fomentar o mercado de carbono. Além disso, a MP também introduziu alterações nas regras de licitações e de licenciamento ambiental das concessões florestais, entre outras medidas.  

O texto está atualmente em análise pelo Congresso Nacional para rejeição ou conversão em lei. Nos próximos meses, será possível afirmar se a permissão seguirá valendo e, em caso afirmativo, quais serão os seus efeitos práticos para as concessões florestais e para o mercado de carbono. 

Economia circular 

A logística reversa de embalagens de plástico,7 papel e papelão,8 metal9 e vidro10 foi objeto de consultas públicas, por parte do governo federal, para a elaboração de decretos regulamentadores do art. 32, § 2º, e do art. 33, § 1º, da Lei nº 12.305/2010,1112 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (“PNRS”). Apenas o regulamento referente às embalagens de vidro foi publicado, de modo que podemos aguardar inovações regulatórias nessa seara nos próximos meses.  

No que tange às embalagens de vidro, o Decreto nº 11.300/2022 institui um sistema de logística reversa (“SLR”) em duas fases, uma preparatória e outra de implementação e operacionalização. As medidas preparatórias que compõem a primeira fase incluem a instituição de um mecanismo financeiro que garanta a sustentabilidade econômica do sistema, a criação de um grupo de acompanhamento de performance, a elaboração de planos de comunicação e de educação ambiental, entre outras. Já a segunda fase prevê a instalação de pontos de recebimento e consolidação, formalização de instrumentos legais entre cooperativas e associações de catadores, entre outros. 

Por fim, em fevereiro de 2023, foi editado o Decreto nº 11.416/2023, que institui três certificações relacionadas à logística reversa para empresas que atuam nos setores previstos no art. 33 da Lei nº 12.305/2010.13 São eles: (i) o Certificado de Crédito de Reciclagem de Logística Reversa (“CCRLR”), que comprova a restituição ao ciclo produtivo da massa equivalente dos produtos ou das embalagens sujeitas à logística reversa; (ii) o Certificado de Estruturação e Reciclagem de Embalagens em Geral (“CERE”), que certifica a empresa que é titular de projeto estruturante de recuperação de materiais recicláveis; e (iii) o Certificado de Crédito de Massa Futura, que certificará o cumprimento antecipado de metas de logística reversa por uma empresa por meio da criação de sistemas estruturantes que atendam a certos requisitos. Espera-se, com isso, que sejam impulsionados os sistemas de logística reversa previstos já há tanto tempo na PNRS. 

Diante do exposto, nota-se, de um lado, um avanço a passos largos na regulação de temas ESG no Brasil. O cenário brasileiro acompanha a tendência mundial de proliferação de instrumentos normativos que têm por objetivo incentivar a adoção de práticas mais sustentáveis por parte de agentes econômicos. De outro, ainda há muitos aspectos pendentes de regulação, o que demandará adequações e aprimoramentos contínuos. O monitoramento dessas tendências permite a adoção de medidas em antecipação às ações regulatórias, o que reduz riscos e garante vantagens competitivas. Nos próximos artigos desta série, aprofundaremos e apresentaremos os desenvolvimentos observados nos temas aqui abordados, como forma de contribuir para esse monitoramento. 

1 PACTO GLOBAL. Who Cares Wins: Connecting Financial Markets to a Changing World. Disponível em: <https://pt.scribd.com/fullscreen/16876740?access_key=key-16pe23pd759qalbnx2pv>. 

2 EXAME. ESG: Por que a busca pelo termo cresceu 1200% em 2 anos. Disponível em: <https://exame.com/esg/esg-por-que-a-busca-pelo-termo-cresceu-1200-em-2-anos/>.  

3 Grupo internacional de investidores institucionais formado no âmbito das Nações Unidas para compreender as implicações de fatores ESG nos investimentos e para dar suporte a seus signatários na incorporação desses fatores às suas decisões de investimento. 

4 UNPRI. Regulation database. Disponível em: <https://www.unpri.org/policy/regulation-database>. 

5 A Resolução CMN nº 4.943/2021, a Resolução CMN nº 4.945/2021, a Resolução BCB nº 151/2021, Resolução CMN nº 4.944/2021 e a Resolução BCB nº 139/2021. 

6 Estabelece que os agentes econômicos dos seguintes setores devam desenvolver planos setoriais: geração e distribuição de energia elétrica, transporte público urbano, sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros, indústria de transformação e de bens de consumo duráveis, indústrias químicas fina e de base, indústria de papel e celulose, mineração, construção civil, serviços de saúde e agropecuária. 

7 Disponível em: <https://www.gov.br/participamaisbrasil/decreto-embalagens-de-plastico>. 

8 Disponível em: <https://www.gov.br/participamaisbrasil/decreto-embalagens-de-papel-e-papelao>. 

9 Disponível em: <https://www.gov.br/participamaisbrasil/decreto-embalagensde-metal>. 

10 Disponível em: <http://consultaspublicas.mma.gov.br/decretoembalagensdevidro/>. 

11 “Art. 32. As embalagens devem ser fabricadas com materiais que propiciem a reutilização ou a reciclagem. (…) § 2º O regulamento disporá sobre os casos em que, por razões de ordem técnica ou econômica, não seja viável a aplicação do disposto no caput (…)”. 

12 “Art. 33. São obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de: (…) § 1º  Na forma do disposto em regulamento ou em acordos setoriais e termos de compromisso firmados entre o poder público e o setor empresarial, os sistemas previstos no caput serão estendidos a produtos comercializados em embalagens plásticas, metálicas ou de vidro, e aos demais produtos e embalagens, considerando, prioritariamente, o grau e a extensão do impacto à saúde pública e ao meio ambiente dos resíduos gerados (…)” (grifou-se). 

13 “Art. 33.  São obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de: I – agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso, observadas as regras de gerenciamento de resíduos perigosos previstas em lei ou regulamento, em normas estabelecidas pelos órgãos do Sisnama, do SNVS e do Suasa, ou em normas técnicas; II – pilhas e baterias; III – pneus; IV – óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; V – lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; VI – produtos eletroeletrônicos e seus componentes (…)”. 

A legalidade realista no direito administrativo sancionador

Por Alice Voronoff e Juliana Bonacorsi de Palma

Artigo publicado originalmente na coluna Fumus Boni Iuris do portal O Globo.

A legalidade é sem dúvida um dos princípios mais badalados e controversos nas prosas jurídicas. Não que se duvide de sua importância para o Estado Democrático de Direito. Mas em alguns campos, seu sentido e alcance ainda estão sujeitos a um enorme grau de incompreensão. Este artigo busca justamente provocar reflexões sobre o sentido da legalidade no direito administrativo sancionador. Em uma pergunta: a experiência prática pode trazer alguma ordem de limitação ao poder de o Estado punir? E nada melhor do que fazê-lo a partir de problemas hipotéticos, numa espécie de convite ao leitor para que teste suas convicções. A eles.

Problema n. 1: caso do cachorro no parque. Na cidade Feliz, há um belo parque municipal no qual uma placa avisa: “Proibida a entrada de animais. Infração sujeita a multa administrativa”. Felícia se mudou para a cidade Feliz há cerca de 3 anos e passou a morar em um apartamento com vista para o parque. Desde então, observa que muitas pessoas frequentam o parque com seus bichinhos de estimação e, curiosa, resolveu perguntar aos usuários se já haviam sido multados. Todos responderam negativamente e frisaram que isso jamais ocorreria porque a cidade Feliz seria historicamente um lugar amigo dos animais. Mais segura, Felícia comprou um cãozinho e resolveu passear com o novo amigo no parque. Qual não foi a surpresa quando, alguns dias depois, recebeu uma notificação de infração para que pagasse multa por desobedecer à proibição constante da lei municipal de ordenação dos parques urbanos. Pergunta-se: é legítimo o auto de infração lavrado contra Felícia?

Problema n. 2: caso da mudança de interpretação. A empresa Eficiente celebrou contrato de PPP com o município Moralidade, na modalidade de concessão administrativa, para construir e administrar determinado hospital municipal. De acordo com o contrato, a concessionária está sujeita à aplicação de multa sempre que for constatada fila de espera para internações com 10 ou mais pacientes por pelo menos 3 vezes no mesmo mês. Diz o contrato, contudo, que a penalidade deixará de ser aplicada nos casos de aumentos de demanda gerados por surtos virais classificados como graves. Assim foi que, no ano de 2010, verificado o gatilho contratual por conta de um surto de gripe, a empresa Eficiente deixou de ser punida com base na cláusula de exceção prevista no contrato. Em 2015, deflagrado novo gatilho de demanda em razão de um surto de gastroenterite, a empresa mais uma vez invocou a exceção contratual e não foi sancionada. Mas em 2020, após um aumento exponencial da demanda hospitalar em razão de novo surto de gripe, o pedido de aplicação da exceção foi rejeitado. Segundo o ente municipal, o conceito de “surto viral grave” seria indeterminado e, por isso, passível de reinterpretação no tempo. Logo, à luz do conhecimento científico mais recente, haveria elementos para se retirar a gripe da categoria de virose grave. No máximo, de gravidade média. Por conseguinte, se imporia a aplicação da penalidade contratual.

Problema n. 3: caso do prefeito expansivo. No município da Alegria, Seu João montou uma pequena lanchonete para incrementar a renda familiar. Ele sabia que, de acordo com as normas de ocupação do solo urbano, não poderia colocar mesas e cadeiras nas calçadas para servir sua clientela. Mas desde que o prefeito Felicidade assumiu o comando do Poder Executivo, passou a dizer publicamente que tais regras seriam contrárias aos interesses da população. Afinal, as mesinhas expandiriam os espaços de lazer da cidade e todos ganhariam em bem-estar. Incentivado pelas declarações públicas do prefeito, Seu João colocou 5 mesinhas em frente à sua lanchonete, como o fizeram outros comerciantes. Quatro anos depois, contudo, recebeu diversas autuações da Secretaria Municipal da Ordem Pública pelo descumprimento flagrante da legislação vigente. Perplexo, Seu João procurou o ex-prefeito para resolver esse absurdo, mas não teve sucesso. Segundo Felicidade, as regras seriam válidas e nunca teriam sido revogadas ou anuladas, apesar de considerá-las de mau gosto.

São três casos que podem ser resolvidos à luz da legalidade. Mas dependendo do sentido que se atribua ao princípio, as respostas serão diametralmente opostas.

No sentido formal, de uma legalidade positivada, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João devem ser sancionados. Trata-se da aplicação da legislação tomada como uma fotografia: a imagem estática daquilo que consta dos códigos. A isso se poderia adicionar um argumento de autoridade: a natureza vinculada da atividade sancionatória da Administração Pública. Descumprida a regra formal, cabe ao administrador aplicar a consequência prevista no comando jurídico, sob pena de prevaricar. Isso, frise-se, independentemente de comparações com casos ou momentos diversos.

Já se o leitor trilhar pela legalidade material — i.e., a legalidade enquanto juridicidade, como vinculação ao ordenamento jurídico, incluindo a normatividade constitucional —, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João não podem ser sancionados. Nos três casos, porque o comportamento da Administração Pública não pode ser ignorado. Como num filme, ele importa. Mais do que isso, ele integra o sentido de legalidade. No primeiro caso, a omissão da prefeitura por um tempo considerável criou em Felícia a percepção de que entrar com animaizinhos no parque era a regra na cidade Feliz, e não o contrário. Como ela poderia pensar de modo diverso, se ao longo de pelo menos três anos todos os seus vizinhos e frequentadores levaram seus cães, gatos e bichinhos ao parque? No segundo caso, a empresa Eficiente tinha exemplos de situações pretéritas vivenciadas ao longo da execução contratual em que o Poder Concedente claramente manifestou seu entendimento a propósito dos surtos virais, incluindo os de gripe. Poderia ela ser surpreendida com a sanção em situação análoga, sob o pretexto de aplicação de um entendimento até então jamais externalizado pela Administração Pública? No terceiro caso, as declarações públicas do chefe do Poder Executivo, seguidas do apoio das autoridades à ocupação das calçadas, gerou em Seu João a convicção de que a proibição teria sido superada. Pode-se afirmar que ele agiu de má-fé, com a intenção de descumprir as regras de ocupação do espaço urbano?

Enfim, a questão é saber se há resposta certa a cada um desses problemas, ou se a beleza do Direito consiste justamente na pluralidade de raciocínios legítimos que possam ser desenvolvidos. A nosso ver, há resposta certa: apenas o sentido material de legalidade resolve legitimamente tais casos. É que não há legalidade possível sem previsibilidade. O poder de punir da Administração Pública pressupõe que os particulares conheçam com clareza as condutas que lhe são vedadas ou exigidas. E isso não se verifica nas três situações hipotéticas analisadas. Seja pelo costume de o Poder Público tolerar o descumprimento da lei, na primeira delas; pela mudança de interpretação, na segunda; pelas declarações públicas de cunho orientativo, na terceira. A verdade é que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João foram legitimamente induzidos a acreditar que se comportavam em conformidade com o ordenamento jurídico.

Apenas o sentido material da legalidade considera a realidade. E há muitas formas de a Administração Pública — a maior intérprete do Direito — modificar o mundo dos fatos: práticas, costumes, precedentes, orientações, tolerâncias, decisões, atos de execução material, omissões etc. Leis, decretos e regulamentos são documentos com textos escritos. Sem se conectarem com a realidade, nada são. A norma jurídica é a interpretação que se confere ao texto normativo diante de uma situação concreta, que também compreende as várias expressões da Administração Pública.

Ao levar seu cachorro ao parque, Felícia cumpriu com a norma de admitir cachorros no parque fruto da tolerância das autoridades públicas, embora o texto legal os proibisse. A empresa Eficiente cumpriu com a norma de compreender “surto viral grave” conforme decisões pretéritas do Poder Público. Seu João cumpriu à risca as orientações do ex-prefeito Feliz, chefe do Poder Executivo e com hierarquia na interpretação normativa. Esses são todos exemplos de conformidade. Por isso afirmar com tanta ênfase que a legalidade formal não foi recepcionada no Direito Administrativo Sancionador, apesar de esta ideia ainda ser forte na cultura jurídica brasileira, levando ao exercício sistemático do poder sancionador de modo ilegítimo e teratológico.

Em rigor, os casos hipotéticos acima sequer são difíceis. Há problemas um tanto mais complexos com os quais se preocupar no direito. Otimizemos nossas energias.

LGPD, dosimetria e segurança jurídica: primeiras impressões sobre o regulamento da ANPD

No último dia 27 de fevereiro, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou a resolução que regulamenta os artigos 52 e 53 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). O objetivo é definir os parâmetros para a aplicação de sanções pecuniárias e não pecuniárias, bem como as formas e dosimetrias para o cálculo do valor-base das multas.

Alice Voronoff é coautora de artigo publicado na coluna Fumus Boni Iuris, do jornal O Globo, reunindo as primeiras impressões sobre esse regulamento da ANPD.

Leia na íntegra clicando aqui.

Artigo | A desistência no mandado de segurança: considerações sobre precedente do STJ

Em artigo publicado no portal jurídico ConJur, os advogados Francisco Defanti e Mateus Dias fizeram uma reflexão sobre a recente decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça sobre uma desistência no mandado de segurança.

No caso em questão, o STJ homologou a desistência de um mandado de segurança formalizado pela parte impetrante, mesmo após a prolação de sentença e acórdão de mérito pelas instâncias de origem. O tribunal considerou que o STF havia firmado jurisprudência em sede de Repercussão Geral no sentido de que a parte impetrante poderia desistir da ação a qualquer momento da tramitação processual e independentemente de anuência da contraparte.

Leia o artigo na íntegra clicando aqui.

Artigo | Inteligência artificial e as decisões administrativas

Como o surgimento de programas de inteligência artificial capazes de tomar decisões múltiplas de forma rápida e autônoma pode melhorar os processos de tomada de decisão pela Administração Pública? E como o direito administrativo deve responder a esse desafio de potencializar o uso da tecnologia?

Nosso sócio Gustavo Binenbojm analisa essas indagações em artigo publicado na Revista Eletrônica da PGE RJ. Leia na íntegra clicando aqui.