Competências federativas, ambiente virtual e bets

Alice Voronoff e Rafaela Canetti publicaram no Pipeline Valor análise sobre a regulação das apostas de cota fixa no Brasil. O enfoque são os desafios decorrentes da distribuição de competências entre União e Estados no ambiente digital. Conforme explicam as autoras, se, até então, as loterias (tidas pelo STF como serviços públicos) eram atividades demarcadas geograficamente, essa realidade se esfacelou com a disseminação das bets. E já são várias as ações judiciais que tratam do tema, destrinchadas pelas advogadas no artigo.

Leia o artigo completo:
https://pipelinevalor.globo.com/mercado/noticia/competencias-federativas-ambiente-virtual-e-bets.ghtml

Artigo: O presidente da República deve ter o poder de demitir quem bem entender?

O artigo, escrito pelo sócio Gustavo Binenbojm e por Pedro de Hollanda Dionisio, analisa os limites do poder presidencial na demissão de autoridades de agências reguladoras e as possíveis repercussões que decisão sobre o tema pela Suprema Corte dos Estados Unidos pode ter para a autonomia das instituições no Brasil. A discussão levanta reflexões sobre a separação de poderes e a estabilidade das agências reguladoras.

Leia na íntegra: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2025/02/artigo-o-presidente-da-republica-deve-ter-o-poder-de-demitir-quem-bem-entender.ghtml

LIBERDADE RELIGIOSA E LAICISMO ESTATAL NA IDENTIFICAÇÃO CIVIL: Uma Breve Análise Comparada Entre Brasil e França

Soraya Nouira y Maurity

A tensão entre a liberdade religiosa e a neutralidade estatal tem sido um ponto central nos debates jurídicos contemporâneos, especialmente quando se trata de identificação civil. O desafio de equilibrar o direito à manifestação religiosa com a necessidade de garantir a autenticidade e a segurança dos documentos oficiais tem levado diferentes ordenamentos jurídicos a estabelecer limites ao uso de vestimentas e símbolos religiosos, refletindo distintas concepções de laicidade e do papel do Estado na regulação do espaço público.

Recentemente, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou a questão da compatibilidade entre a liberdade religiosa e a exigência de identificação civil no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 859.376, com repercussão geral reconhecida (Tema 953). Na França, o Poder Legislativo e Conselho de Estado (Conseil d’État) também se debruçaram sobre a matéria para avaliar a legitimidade de artefatos e símbolos religiosos em fotografias oficiais e espaços público.

Embora ambas os ordenamentos tenham chegado a uma conclusão semelhante quanto à compatibilização entre a liberdade religiosa e a necessidade de identificação civil – reconhecendo que o uso de acessórios religiosos não pode comprometer a segurança e a finalidade do documento oficial –, suas decisões refletem contextos culturais, sociais e jurídicos específicos,[1] que levam a concepções distintas sobre laicidade.

Nesse sentido, pode-se distinguir entre laicidade passiva e laicidade ativa para descrever os diferentes graus de intervenção do Estado diante das manifestações religiosas no espaço público. Enquanto a laicidade passiva, colaborativa ou pluralista tende a permitir a expressão de crenças, desde que não seja inviabilizada a finalidade estatal (como a identificação ou a manutenção da ordem), a laicidade ativa pode impor restrições mais amplas, entendendo que a neutralidade do Estado demanda limitar signos religiosos em maior medida, sobretudo em determinadas repartições ou serviços.

O caso de uma estudante muçulmana em Flers, em 1999, exemplifica a rigidez do laicismo francês. A aluna, de 11 anos, recusou-se a tirar o lenço (que cobria apenas os seus cabelos) durante as aulas de educação física. Isso resultou na sua expulsão por descumprir a obrigatoriedade de assiduidade ativa nas atividades escolares. A decisão foi mantida pelas cortes administrativas francesas[2] e, posteriormente, referendada pela Corte Europeia de Direitos Humanos,[3] que reconheceu a legalidade da medida com base na Lei de 15 de março de 2004 (embora os fatos tenham sido anteriores).

A França avançou ainda mais na restrição a vestimentas religiosas com a Lei n.º 2010-1192, de 11 de outubro de 2010,[4] que proibiu o uso de roupas que cubram integralmente o rosto, como o niqab e a burca,em locais públicos.[5] Na Administração Pública francesa, a imposição de neutralidade também se depreende do artigo L.121-2 do Código Geral da Função Pública, o qual estabelece que os agentes públicos devem exercer suas funções com neutralidade, abstendo-se de manifestar opiniões religiosas durante o serviço.[6]

Paralelamente, o Conselho de Estado francês (Conseil d’État) validou exigências legais ou regulamentares que impunham a realização de fotografias com a cabeça descoberta em documentos como carteira de identidade, passaporte, carteira de habilitação e até na emissão de diplomas universitários. Assim, embora se permita o uso de adereços religiosos, uma disposição normativa pode se exigir, em um documento oficial, uma fotografia com a face descoberta,[7] visando evitar os “riscos de falsificação e de usurpação de identidade”.

O laicismo francês tem origem na Lei francesa de 9 de dezembro de 1905, que instituiu a separação entre as Igrejas e o Estado e consolidou no país um ideal fortemente separatista. Essa tradição secular explica uma postura mais intervencionista, buscando garantir a neutralidade do Estado e restringir expressões religiosas em determinados espaços. Isso se reflete, como visto, no âmbito legislativo, com a Lei de 15 de março de 2004 e a lei de 11 de outubro de 2010,[8] mas também na jurisprudência, mais sensível à possibilidade de restrições sempre que a expressão religiosa possa afetar a “ordem pública” ou o chamado “vivre ensemble” (convivência social).

Entretanto, essas categorias não são rígidas nem definitivas, pelo que a concepção de laicidade se adapta às transformações sociais, políticas e jurídicas vividas ao longo do tempo.

Exemplo disso foi a flexibilização decorrente da decisão do Conselho de Estado em 2016,[9] a qual suspendeu diversos decretos municipais que proibiam o uso do burkinitraje de banho que cobre grande parte do corpo, utilizado por mulheres muçulmanas – em praias francesas. A corte salientou que o caráter laico do Estado e a prevenção de desordens não podiam justificar uma restrição genérica e desproporcional. Assim, a decisão manteve a possibilidade de uso do burkini, impondo ao Poder Público demonstrar, caso a caso, risco concreto para a ordem. Mais recentemente, em 17 de julho de 2023,[10] o Conselho de Estado reafirmou esse entendimento ao suspender a proibição imposta pelo prefeito de Mandelieu-la-Napoule contra vestimentas religiosas ostensivas nas praias, que se fundamentava nos ataques terroristas ocorridos em julho de 2016 na Promenade des Anglais em Nice. A Corte destacou que a medida carecia de fundamento jurídico e não demonstrava risco atual e real.

O Conseil d’État também se manifestou sobre a oferta de cardápios diferenciados em cantinas escolares, como menus vegetarianos ou adequados a restrições religiosas (muçulmanas, judaicas etc.). Em determinados pareceres, a corte reconheceu a faculdade do poder público de organizar a merenda de modo a não impor compulsoriamente proteínas proibidas pela religião ou pela consciência do aluno. Entretanto, pontuou-se que esse serviço não deve recair em obrigação de fornecer cardápios estritamente confessionais. Em outras palavras, o Conselho de Estado admite uma margem de acomodação (aménagement raisonnable) para respeitar crenças, mas sem que se atribua às autoridades escolares um dever irrestrito de satisfazer exigências específicas de cada confissão.[11]

Já no caso brasileiro, a abordagem tende a ser mais flexível. Não há regramento geral que proíba a ostentação de sinais religiosos em instituições públicas de ensino. O Brasil tende a assumir uma postura normativa mais colaborativo e pluralista, permitindo um diálogo mais aberto entre Estado e religiões, desde que respeitados os limites constitucionais. Aqui, a separação entre Estado e religião se pauta, principalmente, pela vedação a qualquer vinculação institucional de culto (art. 19, inciso I, da CF/88) e pela liberdade de consciência e de crença (art. 5º, inciso VI, da CF/88), mas há menor propensão a intervir de modo ostensivo nas práticas religiosas, a menos que exista colisão clara com um fim estatal legítimo.[12]

O que se sustenta é que, dentro dos limites constitucionais, há espaço para que a Administração Pública e as religiões dialoguem e encontrem soluções que não sacrifiquem o exercício efetivo das liberdades individuais. A busca é pela conciliação entre pluralidade religiosa e a capacidade estatal de coordenar e regular, sempre com a menor restrição possível aos direitos fundamentais.[13]

Assim, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 859.376 (Tema 953), a Corte estabeleceu a tese de que “é constitucional o uso de vestimentas ou símbolos religiosos em fotografias de documentos, desde que não impeçam a adequada identificação do indivíduo”. Em outras palavras, a Corte admitiu que a liberdade religiosa e a liberdade de expressão não podem ser inviabilizadas além do limite estritamente necessário para assegurar a identificação do titular do documento. Fundamentado nos princípios de liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI, da Constituição), bem como no postulado da proporcionalidade, o STF concluiu que bastava a visibilidade do rosto para atender às finalidades públicas de segurança e confiabilidade no documento.

No plano prático, a convergência do entendimento quanto à identificação civil reforça a promoção de valores democráticos, demonstrando que Estados com tradições distintas podem adotar soluções similares. A exigência de manter o rosto visível se apresenta como a “medida mínima” necessária para garantir a segurança e a função do documento, sem impor restrições desproporcionais à liberdade religiosa.

No entanto, é preciso distinguir o papel das cortes da crescente intolerância social em relação a determinados grupos religiosos. Assim, manifestações de rejeição ou hostilidade não devem influenciar a interpretação dos direitos fundamentais nem justificar restrições indevidas à liberdade de crença. A laicidade, independentemente do modelo adotado, deve servir à imparcialidade do Estado, garantindo que a atuação estatal não se converta em pretexto para legitimar exclusões ou preconceitos sob o véu da ordem pública.


[1] A comparação entre França e Brasil não pode desconsiderar os diferentes cenários migratórios e possíveis choques culturais presentes em cada nação. O Brasil, embora multicultural e com crescente presença de imigrantes de distintas confissões, não vivencia uma pressão tão intensa em termos de políticas migratórias quanto a França, que recebe fluxos expressivos de imigrantes oriundos de países de maioria muçulmana e está sujeita a conflitos gerados pela presença de usos e costumes que podem parecer incompatíveis com o modelo laico francês.

[2] O tribunal administrativo de Caen e a Corte Administrativa de Apelação de Nantes mantiveram a decisão de expulsão, entendendo que a conduta da aluna ultrapassava os limites aceitáveis de manifestação religiosa em ambiente escolar público. Em 29.12.2004, o Conselho de Estado recusou analisar o recurso em última instância, encerrando o caso em favor da manutenção da penalidade.

[3] COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. AFFAIRE DOGRU c. FRANCE (Requête no 27058/05). Os pais da aluna recorreram administrativamente e posteriormente à via judicial, alegando, entre outros pontos, violação da liberdade religiosa (artigo 9 da Convenção Europeia de Direitos Humanos) e do direito à instrução (artigo 2 do Protocolo nº 1). A Corte Europeia de Direitos Humanos, que concluiu não ter havido violação do artigo 9, reconhecendo que a medida do Estado francês estava “prevista em lei” (uma lei de 15 de março de 2004), perseguia um objetivo legítimo (proteção da ordem e dos direitos de terceiros) e era necessária em uma sociedade democrática. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22001-90038%22]}. Acesso em 22 jan. 2025.

[4] A edição da lei havia sido precedida de uma Consulta feita ao Conselho de Estado em 30 de março de 2010. Disponível em: https://www.conseil-etat.fr/publications-colloques/etudes/etude-relative-aux-possibilites-juridiques-d-interdiction-du-port-du-voile-integral. Acesso em 22 jan. 2025. O estudo reconheceu que já existiam restrições pontuais, como a proibição do uso em escolas públicas (Lei de 15 de março de 2004) e a obrigatoriedade de identificação facial em certos procedimentos administrativos e espaços de segurança. No entanto, o Conselho concluiu que uma proibição geral e absoluta do véu integral em todo o espaço público enfrentaria sérios obstáculos jurídicos, especialmente em relação à Constituição Francesa e à Convenção Europeia de Direitos Humanos. Diante disso, o estudo indicou que apenas a segurança pública e o combate à fraude poderiam justificar restrições ao uso do véu integral, e apenas em circunstâncias específicas de tempo e lugar. Assim, a obrigatoriedade de manter o rosto descoberto poderia ser legitimada em situações como controles de identidade, acesso a tribunais, participação em exames e locais onde a identificação é necessária. O estudo também sugeriu a criação de sanções para aqueles que impusessem o uso do véu integral a terceiros, caracterizando essa conduta como infração penal.

[5]Article 1. Nul ne peut, dans l’espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage.” Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000022911670. Acesso em 22 jan. 2025.

[6]  “Article L121-2. Dans l’exercice de ses fonctions, l’agent public est tenu à l’obligation de neutralité.
Il exerce ses fonctions dans le respect du principe de laïcité. A ce titre, il s’abstient notamment de manifester ses opinions religieuses. Il est formé à ce principe. L’agent public traite de façon égale toutes les personnes et respecte leur liberté de conscience et leur dignité
.” Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000044416551/LEGISCTA000044420673/2022-03-01/?anchor=LEGIARTI000044427911#LEGIARTI000044427911. Acesso em 22 jan. 2025.

[7] Para a carteira nacional de identidade: CE, 27 de julho de 2001, Fonds de défense des musulmans en justice, nº 216903; Para o passaporte: CE, 2 de junho de 2003, Mlle R. A., nº 245321, e CE, 24 de outubro de 2003, Mme B., nº 250084; Para a carteira de habilitação: CE, 15 de dezembro de 2006, Association United Sikhs e M. S., nº 289946.

[8] (PENA-RUIZ, Henri. La laïcité. Paris: Presses Universitaires de France, 2003

[9] 26 de agosto.

[10] https://www.conseil-etat.fr/actualites/le-conseil-d-etat-suspend-l-interdiction-des-tenues-manifestant-une-appartenance-religieuse-sur-les-plages-de-mandelieu-la-napoule#:~:text=Saisi%20par%20la%20Ligue%20des,religieuse%2C%20telle%20que%20le%20burkini.

[11] Por exemplo: Conseil d’État 426483, lecture du 11 décembre 2020, ECLI:FR:CECHR:2020:426483.20201211 Décision n° 426483. Disponível em: https://www.conseil-etat.fr/actualites/les-menus-de-substitution-dans-les-cantines-scolaires-qui-ne-sont-qu-une-simple-faculte-pour-les-collectivites-territoriales-ne-sont-pas-contrair

[12] MAZZAROPPI, Ilídia. Laicidade no Estado brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

[13] GONÇALVES, C. R. Laicidade Colaborativa no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2019. STF, RE 859.376, voto do Min. Barroso: “o núcleo essencial do direito de liberdade religiosa permanece intacto enquanto o indivíduo puder manifestar sua crença sem inviabilizar as legítimas finalidades estatais, notadamente a segurança na identificação civil”.

Document Dump ou Infobesidade: Os Limites à Ampla Defesa e ao Contraditório no Processo Administrativo Sancionador

Soraya Nouira y Maurity

Imagine a seguinte situação: em um processo administrativo sancionador instaurado para apurar supostas irregularidades cometidas por um determinado servidor ou empregado público, a Comissão responsável pela instrução do processo acosta aos autos centenas de documentos, divididos em múltiplos volumes, com CDs que contêm milhares de páginas escaneadas, planilhas cripticamente organizadas em softwares complexos e uma infinidade de pareceres técnicos, fotos, diligências, informações, atos normativos e outros elementos probatórios. De imediato, o servidor investigado se sente perdido: por onde começar? Será possível, em prazo hábil (que, geralmente, nas legislações de cada ente público, varia entre cinco a quinze dias), destrinchar todo aquele emaranhado de informações para elaborar uma defesa consistente?

Essa prática, conhecida como document dump ou infobesidade, ilustra o fenômeno abordado neste texto e revela como o excesso de informações, longe de fortalecer o processo, pode prejudicar a compreensão dos fatos e inviabilizar o contraditório e a ampla defesa.

A expressão document dump (literalmente, despejo de documentos) tem origem no direito estrangeiro, sendo mais comum em processos penais, mas sua essência pode ser perfeitamente aplicada aos processos administrativos sancionadores. Também aqui o excesso desordenado de documentos pode comprometer as garantias de ampla defesa e contraditório, sobretudo nos casos em que não há defesa técnica do servidor (cf. Enunciado nº 05, da Súmula Vinculante do STF[1]).

À primeira vista, pode parecer uma forma de conferir maior robustez à instrução processual, mas, na prática, quando realizada de maneira desordenada e sem critérios claros, essa estratégia tende mais a obscurecer do que a esclarecer os fatos. O principal prejudicado é o investigado ou suspeito, que, para exercer seu direito de defesa de forma plena e efetiva, necessita não apenas de acesso ao conteúdo probatório, mas de tempo razoável para analisar cada detalhe com a profundidade necessária, conforme assegurado pelo art. 5º, inc. LIV e LV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88).

A consequência imediata é o desequilíbrio entre as partes. Enquanto o órgão acusador (um ministério, uma agência reguladora, uma corregedoria ou outro ente público) dispõe de equipes multidisciplinares e recursos tecnológicos avançados para manusear dados técnicos, o servidor investigado, em regra, conta com um aparato muito mais modesto. Isso gera uma clara assimetria de armas em prejuízo à ampla defesa e contraditório.

De fato, a garantia do contraditório exige não só que as partes tenham ciência de todas as provas produzidas, mas também que lhes seja permitido compreender o significado desses elementos para, então, refutá-los, corroborá-los ou contextualizá-los de forma efetiva. A mera possibilidade formal de “ter acesso” aos autos não atende, materialmente, às garantias constitucionais.

Veja-se que o próprio regime jurídico-administrativo brasileiro exige que a Administração, ao exercer seu poder-dever de apurar condutas potencialmente ilícitas e impor sanções, atue pautada no interesse público, promovendo as garantias fundamentais legal e constitucionalmente estabelecidas. Sendo assim, a prática do document dump prejudica a ideia de razoabilidade como equidade, a proporcionalidade, a finalidade e a motivação dos atos administrativos. Afinal, se a finalidade desses atos consiste na busca pela verdade dos fatos, essa missão é gravemente prejudicada quando a instrução probatória carece de clareza e objetividade, dificultando não apenas a análise dos elementos de prova pelo investigado, mas também a própria compreensão do caso por quem irá decidir ao final do processo. Além disso, a motivação do ato administrativo – que deve refletir uma relação lógica entre os fatos apurados e a decisão final – também se vê enfraquecida diante da sobrecarga documental, pelo que a multiplicidade desordenada de informações pode mascarar inconsistências, ocultar lacunas probatórias e comprometer a fundamentação da sanção imposta. A distorção vai de encontro, portanto, aos artigos 2º e 50, § 1º, da Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99), que exigem que a prática de atos administrativos sejam fundamentados, de forma explícita, clara e congruente, garantindo transparência e racionalidade na tomada de decisões.

É bem verdade que o document dump não é a única prática prejudicial às garantias de ampla defesa e contraditório. Além do document dump, existem outras estratégias que igualmente podem comprometer a possibilidade de uma defesa efetiva. A chamada fishing expedition, por exemplo, caracteriza-se pela busca desordenada de quaisquer documentos ou informações em uma tentativa generalizada de encontrar algo que sustente a acusação, ainda que não exista, de início, correlação clara com os fatos investigados. Já o lawfare consiste no uso instrumentalizado e abusivo de ações judiciais ou administrativas para enfraquecer ou desmoralizar um adversário, transformando os mecanismos jurídicos em armas de perseguição política ou pessoal.

É preciso, portanto, buscar um ponto ótimo ou satissuficiente[2] entre uma instrução probatória robusta para a toma de decisão administrativa e a necessidade de garantir a efetividade da ampla defesa. Assim, algumas soluções podem ser exploradas para mitigar os impactos dessa prática e assegurar um contraditório efetivo. Em primeiro lugar, seria possível admitir, à luz da ampla defesa, a dilação de prazos nos casos em que a comissão processante reconheça a necessidade de um tempo adicional para que o acusado analise o acervo documental de forma adequada. Essa solução não se limitaria a um benefício processual circunstancial, mas poderia ser fundamentada na ideia mais ampla de uma derrogação excepcional de regras rígidas, quando estas se tornarem um entrave ao direito de defesa.

Em segundo lugar, pode-se argumentar que o acusado teria o direito de exigir da Administração Pública que os documentos probatórios lhe fossem apresentados de maneira organizada, indexada e acessível, de forma a garantir que o exercício da defesa não seja inviabilizado pela dispersão e pela complexidade documental. Essa exigência encontraria respaldo nos deveres da Administração Pública quanto à eficiência e à transparência na condução do processo sancionador.

Em terceiro lugar, outro ponto relevante seria a possibilidade de um reequilíbrio no uso dos instrumentos probatórios. Ainda que o ônus da prova continue recaindo sobre a comissão processante, caberia à defesa utilizar, dentro de parâmetros razoáveis, a própria estrutura técnico-pericial da Administração Pública para examinar e contrapor as provas produzidas contra si. Esse mecanismo garante que o acusado possa se valer dos mesmos meios técnicos e organizacionais disponíveis à Administração para estruturar sua defesa de maneira adequada. Essa proposta contribuiria para reforçar a isonomia processual e evitar que a complexidade do acervo probatório se tornasse, na prática, um obstáculo intransponível ao exercício da defesa.

O ponto central, portanto, é reconhecer que as garantias do contraditório e da ampla defesa não podem ser consideradas como atendidas sob uma perspectiva meramente formal. Se a Administração Pública detém o poder de acusar, deve também garantir que esse poder não se transforme em uma barreira insuperável para o acusado.


[1] “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.”

[2] O termo “satissuficiente” remete à teoria da satisficing (Simon, 1956), segundo a qual, para a tomada de decisões, deve-ser buscar soluções “satisfatórias” ou “adequadas” em vez de ideais ou ótimas, especialmente em contextos de incerteza e recursos limitados. O termo foi originalmente cunhado pelo economista Herbert Simon. Em vez de tentar encontrar a melhor solução possível (maximização), satisficing envolve buscar uma solução que seja “boa o suficiente” para atingir um objetivo mínimo ou um padrão aceitável.

Transformações do Direito Administrativo: Democracia, Participação e Decisão Regulatória

A advogada do GBA, Soraya Nouira, contribuiu com a coletânea “Transformações do Direito Administrativo: Democracia, Participação e Decisão Regulatória”, fruto de seminário promovido pela FGV Direito Rio e a UERJ.

Em seu artigo, intitulado “A incorporação das autorizações no conceito de serviço público na visão do STF: um novo conteúdo econômico ou uma mera questão de nomenclatura?”, Soraya propõe uma reflexão sobre a utilidade do conceito de serviço público no atual contexto jurídico e regulatório. O texto examina se a ampliação desse conceito por meio das autorizações promove eficiência, universalidade e isonomia, ou se representa apenas uma reconfiguração terminológica, com possíveis impactos concorrenciais.

Confira na íntegra: https://direitorio.fgv.br/publicacao/transformacoes-do-direito-administrativo-democracia-participacao-e-decisao-regulatoria

O fim do Regime Jurídico Único

Nosso sócio, André Cyrino, em coautoria com a Professora Anna Carolina Migueis Pereira, analisa os efeitos da extinção definitiva do Regime Jurídico Único (RJU) por meio da recente decisão do STF. O artigo, publicado no JOTA, examina as limitações históricas do RJU, destacando a sua natureza “fictícia”. Os autores refletem sobre como o julgamento abre a oportunidade para repensar a gestão de recursos humanos na Administração Pública, alinhando-a com as necessidades e características de cada função administrativa.

Leia o artigo completo: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-fim-do-regime-juridico-unico