Gustavo Binenbojm toma posse na Academia Brasileira de Letras Jurídicas

Nosso Sócio e Professor Gustavo Binenbojm ocupará a cadeira de número quatro na Academia Brasileira de Letras Jurídicas. A posição, anteriormente ocupada pelo Professor Paulo Bonavides, tem o grande jurista Afonso Arinos como patrono.

A cerimônia de posse foi realizada no dia 07 de novembro, no Centro Cultural da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, no centro do Rio.

Para Gustavo, “a Academia Brasileira de Letras Jurídicas é uma instituição tradicionalíssima, que reúne grandes juristas brasileiros, responsáveis pela construção e difusão da cultura do Direito entre nós”.

Fundada em 1975, a ABLJ é uma associação civil reconhecida de utilidade pública federal. A instituição, composta por 50 bacharéis, tem como objetivo o estudo do Direito em todos os seus ramos.

Papel da sanção na melhoria dos serviços públicos e demais atividades reguladas

Por Alice Voronoff e Flavine Meghy Metne Mendes
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.

Passados mais de 20 anos da institucionalização das agências reguladoras no Brasil, a regulação permanece vívida nos aspectos da prática e teoria e, não raro, vem assumindo a centralidade de inúmeros debates promovidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A função normativa é a função, por excelência, que sempre despertou muito interesse dos pesquisadores, economistas e estudiosos da área jurídica em geral. É sobre ela que se espraiam as tipologias de Análise de Impacto Regulatório, monitoramento prospectivo e retrospectivo da carga regulatória normativa, além de outros aspectos não menos indissociáveis de aferição dos impactos da regulação na economia.

Entretanto, é o exercício da função fiscalizatória que permite a detecção de suposta infração (contratual ou não) e do descumprimento de metas e exigências regulatórias em geral, de forma que, após sua comprovação, nasce para a entidade regulatória a possibilidade de impor medida punitiva ao regulado. Por óbvio, é sobre essa função que incide o Direito Regulatório Sancionador.

Na materialização do poder sancionatório, a penalidade pecuniária é a sanção invariavelmente mais aplicada no dia a dia das agências reguladoras, independentemente de se tratar de um contexto fático inédito ou corriqueiro. Mas é preciso questionar se a referida estratégia é a mais adequada e eficiente à luz dos objetivos legais e institucionais das entidades reguladoras, incluindo o de promoção da maior conformidade do comportamento dos regulados. E a pergunta é ainda mais pertinente no contexto de serviços públicos regulados cuja prestação foi delegada à iniciativa privada, nos quais contratos de longo prazo e incompletos sujeitam-se ao influxo de riscos, inovações, demandas e mudanças comportamentais inusitados.

O que se espera a cargo das agências é a adoção de atos coerentes à efetividade da regulação e, para que isso seja possível, confia-se que as decisões regulatórias serão cada vez mais proporcionais, razoáveis, técnicas, eivadas de conhecimento multidisciplinar e equidistantes, sob os desígnios de uma neutralidade desejável dos interesses dos atores envolvidos – como concedente, concessionários e usuários nos casos em que a regulação incide sob atividade prestada por particular delegatário de serviço público.

Em paralelo, vale rememorar parte das premissas do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRE), aprovado em 21 de setembro de 1995, particularmente aquelas que fomentam a importância da institucionalização de entes reguladores como autênticos supervisores do jogo econômico, estabelecendo regras, amortecendo tensões e conflitos, ao mesmo tempo em que ostentam condições assecuratórias de equilíbrio de atuação dos atores econômicos, em um desejável fortalecimento ao bem-estar social.

Essas premissas guardam coerência com as atividades primaciais da regulação: definição de metas, pautas e atingimento das finalidades regulatórias a cargo das entidades reguladoras; traduzindo-se o poder sancionatório como instrumento de coerção para o efetivo alcance das condutas desejadas. Isto é, como uma dentre as diversas ferramentas passíveis de serem utilizadas para assegurar e incentivar a conformidade, em meio a um cardápio que inclui, dentre outras, estratégias informativas, recomendações, sanções premiais, arranjos da economia comportamental e meios consensuais.

O conceito é de extrema relevância, já que demonstra que nem sempre penalizar é o melhor caminho ou garantia de atendimento ao interesse público. Nos serviços públicos, há que se ponderar os benefícios que poderão ser trazidos aos usuários com a imposição de sanção.

Nesse passo, tendo-se em mente os eixos determinantes da atividade regulatória do Estado, é de se refletir sobre o papel da penalidade pecuniária aplicada num contexto de falhas do serviço correlatas a fatos geradores inéditos, repetitivos ou similares. Em suma, apesar de didática, a multa simplesmente não é capaz de inibir novos incidentes. Daí se indagar: a repetição imoderada de multas exterioriza ineficiência do serviço público ou, ao contrário, da própria regulação estatal? Qual é o papel da multa para a melhoria do serviço público?

Em linha com o entendimento de Barbosa Neves, só há verdadeira regulação estatal onde houver autonomia, sendo indispensável que a autoridade reguladora seja dotada de independência e estabilidade para a prática do ato. Logo, a penalidade pecuniária deve ser aplicada se, de fato, for menos onerosa e eficaz em dissuadir condutas indesejadas. A rigor, não há nenhum ineditismo aqui e pode-se dizer que essa é ratio do clássico princípio constitucional da proporcionalidade que vincula o atuar da Administração Pública, na sua dimensão de necessidade. Dito de outra forma, havendo uma pluralidade de meios que satisfaçam os imperativos regulatórios, deverá o regulador optar por aquele que seja menos gravoso. A sanção, neste contexto, deverá ser o último recurso empregado.

É justamente sob influxo do princípio da proporcionalidade que se discute o caráter didático da multa, adstrito aos seus respectivos limites, de forma que a mera imposição reiterada, sem juízo reflexivo (em semelhança ao que se faz por meio da AIR) pode expressar desvio de finalidade regulatório. Mais ainda, à revelia dos valores consubstanciados nas recentes alterações promovidas na LINDB, comportamentos dessa natureza fecham os olhos para importantes avanços conquistados pelo Direito Administrativo, como a busca da consensualidade — norte na solução de conflitos entre os segmentos público e privado.

Em nome do equilíbrio que se busca por meio da redefiniçao das funções do Estado, como ensinam Voronoff e Mendes, a virtude está no meio. Meio esse que não se alcança pela aplicação irresponsável do direito em detrimento dos princípios norteadores da regulação, nem pela omissão do gestor na apuração de falhas contratuais. As violações contratuais têm de ser investigadas, endereçadas e, se for o caso, punidas com rigor. Igualmente, não podem ser deixados de lado as falhas e anacronismos tecnológicos a que os contratos de concessão mais antigos estão mais sujeitos.

A regulação deve ser apta a produzir mudanças efetivas e concretas na economia e, por essa razão, não há efeito algum, à luz da eficiência, na aplicação de uma medida sancionatória grave, se o ato não tem a mínima aptidão para modificar a realidade. Não à toa, em diversas passagens do Acórdão n° 1970/2017, o Tribunal de Contas da União (TCU), no monitoramento do acompanhamento da arrecadação de multas aplicadas, reitera a necessidade de demonstração por parte das entidades federais, com atribuições de fiscalização e controle, da correlação da aplicabilidade da multa com a melhoria efetiva do serviço público.

Ao que se vê, a penalidade não é um fim em si mesmo. A agência reguladora deve adotar soluções tendentes à melhoria constante do serviço, competindo-lhe, em coerência com princípio da atualidade, fomentar o aperfeiçoamento dos contratos, serviços regulados, subordinada assim ao estado das coisas (realidade), influenciado cada vez mais pelas implicações das inovações.

É oportuno lembrar que a pandemia provocada pela Covid-19 acelerou os avanços e implementação de novas tecnologias. O uso da robótica vem se mostrando cada vez mais eficiente em inspeções de tubos enterrados. Novas formas de monitoramento permitem uma leitura mais clara do estado da arte de uma determinada rede de tubulações, facilitando em curto espaço de tempo o reparo necessário ao mesmo tempo em que afasta os riscos de escavações desnecessárias. Na Índia, os robôs são utilizados para mapeamento da rede de esgoto na identificação dos reparos necessários. Em Israel, sensores de satélite percorrem os céus para detectar vazamentos de água, facilitando o célere lançamento de ações corretivas. São esforços significativos alinhados à regulação responsiva e que podem ser bem
trabalhados por meio da celebração de termos consensuais substitutivos de sanções.

Sob esse espectro, Barbosa Neves é enfático ao reafirmar que as agências reguladoras dispõem do poder punitivo como poderoso instrumento para proceder e exigir alterações, adequações. Isso tudo pode ser manejado por meio de obrigação de fazer, exsurgindo a aplicação da multa como recurso instrumental ao cumprimento da medida regulatória que se requer, com significativa vantagem aos usuários.

Referências bibliográficas
BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding regulation: theory, strategy and practic. Oxford: Oxford University Press, 2012, p.1.

BARBOSA NEVES; Sergio Luiz. Limites à função sancionatória das agências reguladoras de serviços públicos. Revista de Direito Administrativo e Gestão
Pública Minas Gerais, v.1, p. 103-119, jul/dez.215.

MENDES, Flavine Meghy Metne. Processo normativo das agências reguladoras: atributos específicos à governança regulatória. São Paulo: Giz Editorial.


ROOT, Rebela L. Robots, drones, and AI: The new technology making waves in Wash. https://www.devex.com/news/robots-drones-and-ai-the-new-technology-
making-waves-in-wash-99312.


THIENE, Peter Van; et. al. Robotcs in the water industry. https://www.kwrwater.nl/en/actueel/robotics-in-the-water-industry/.
VORONOFF, Alice; MENDES, Flavine. Realidade vence o direito? O princípio da segurança jurídica. CONJUR. Artigo publicado em 31 de julho de 2022.


https://www.conjur.com.br/2022-jul-31/voronoffe-mendes-principio-seguranca-juridica.
Alice Voronoff é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.


Flavine Meghy Metne Mendes é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos, conferencista, consultora jurídica, doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

Por um regime jurídico mínimo do direito administrativo sancionador

Por Alice Voronoff
Artigo originalmente publicado no Revista Consultor Jurídico.

Faz sentido a modernização da Lei do Processo Administrativo federal — para se tornar, inclusive, nacional —, diante das irrefreáveis tendências e evolução porque passaram a prática e a compreensão das relações estabelecidas entre a Administração Pública e particulares. Mas faz ainda mais sentido essa modernização para se criar uma disciplina jurídica mínima aplicável ao direito administrativo sancionador. Em verdade, difícil é entender por que, até agora, esse salto civilizatório tardou a se apresentar.


O direito administrativo se alastrou. Ocupou espaços. No trânsito, na vigilância sanitária, no setor elétrico, no meio ambiente e em tantas outras dimensões das relações jurídicas travadas pelas pessoas e por seus negócios. E parte relevante desse fenômeno de “administrativização” da vida se faz sentir justamente no campo sancionatório. Ou seja, quando o particular descumpre prescrições administrativas e fica sujeito a uma ou mais medidas estatais coercitivas com efeitos negativos. Advertência, multa, suspensão de direitos, apreensão de mercadorias, fechamento de estabelecimentos, publicação de informações, dentre outras. Há um conjunto realmente variado de gravames no cardápio da Administração Pública, aplicados segundo uma lógica de comando e controle.


Até aí, nenhuma novidade. A perplexidade era, e é, a incerteza jurídica em torno da aplicação dessas punições, cenário que vulnerabiliza garantias de estatura constitucional e se converte em custos — associados, por exemplo, a processos sancionatórios pouco transparentes e instaurados de maneira pro forma, apenas para “legitimar” decisões já tomadas. Isso, quando instaurados, porque a realidade de muitos entes federativos subnacionais, especialmente municípios, é de ausência completa de um grau mínimo de institucionalidade.


Por isso a propositura de uma disciplina própria dedicado ao direito administrativo sancionador no anteprojeto de lei ordinária para a reforma da Lei nº 9.784/99, recentemente apresentado pelo Relatório Final da Comissão de Juristas instituída pelo Ato Conjunto dos Presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal n⁰1/2022, é de ser aplaudida e apoiada. É verdade que o direito a um procedimento sancionatório prévio e adequado decorre da própria Constituição; que leis esparsas fixaram, ao longo do tempo, previsões mais ou menos minudentes nesse sentido (a exemplo do artigo 4º-A, II, da Lei de Liberdade Econômica); e que, inclusive, na alteração promovida na Lei de Improbidade Administrativa, o legislador remeteu expressamente aos “princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.


Mas o potencial transformador do regime jurídico mínimo proposto pela Comissão de Juristas é incomparável, em uma sistematização que, de uma só tacada: 1) diz expressamente o óbvio (porque o óbvio precisa ser dito); 2) propõe mudanças incrementais para aperfeiçoar um modus operandi em curso; e 3) vai além, com uma dose palpitante de ousadia, para sugerir inovações jurídicas voltadas a induzir transformações. Dou um exemplo de cada.


O artigo 68-G prevê que “O investigado, sindicado ou processado tem o direito de permanecer em silêncio em interrogatórios, ou depoimentos e o seu silêncio não caracterizará confissão”. O direito à não autoincriminação está previsto no artigo 5º, LXIII, da Constituição, e no artigo 8º, inciso 2, “g”, do Pacto de São José da Costa Rica, que assegura a toda pessoa acusada de delito o “direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. A lei não precisaria esclarecer que essa previsão abrange o exercício do poder punitivo estatal independentemente da forma como ele se manifeste — pela via penal ou administrativa. Mas é importante que seja dito em um Brasil de muitas realidades distintas, assimetrias de informação e injustiças.


Já o artigo 68-C, “d” estende o instituto da decisão coordenada para a esfera administrativa sancionatória. Foi relativamente há pouco tempo que a Lei nº14.210/2021 inseriu os artigos 49-A a 49-G na Lei nº 9.784/99 para disciplinar a articulação no âmbito da Administração Pública federal quando as decisões administrativas exijam a participação de três ou mais setores, órgãos ou entidades. Mas sua potencialidade acabou de certa forma podada diante da previsão de que a decisão coordenada não se aplica quando o processo envolver “poder sancionador”. A proposta do anteprojeto é de que as autoridades administrativas e controladoras poderão “atuar de forma coordenada com outro órgão, com a finalidade de instrução e decisão conjunta, hipótese em que, havendo a possibilidade
de aplicação de sanção de igual natureza por mais de um órgão, a pena final aplicada não deverá superar a pena mais grave”.


Por fim, o §3º do artigo 68-G do anteprojeto estabelece que “§3º A Administração pública tem o dever de garantir a cadeia de custódia preservando todos os elementos de prova acessados ou examinados no curso da investigação preliminar, sindicância ou processo administrativo sancionador”. A ideia é levar para o processo administrativo sancionador cautelas exigidas pelos artigos 158-A e 158-B do Código de Processo Penal. Se aprovada, a proposta imporá transformações não apenas materiais à Administração Pública, que precisará conformar suas práticas a despeito da escassez de recursos e de qualificação, mas sobretudo culturais e institucionais.


A Constituição aboliu a verdade sabida. Condicionou a punição a um procedimento prévio que assegure ampla defesa. Mas já é tempo de ir além, para se assegurar, vez por todas, o direito à higidez desse procedimento, nem sempre claro, nem valorizado por quem interpreta e aplica o direito. O anteprojeto abre a oportunidade para essa e outras benfazejas transformações.

Alice Voronoff é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

Realidade vence o direito? O princípio da segurança jurídica

Por Alice Voronoff e Flavine Meghy Metne Mendes
Artigo originalmente publicado no Revista Consultor Jurídico.

“Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.” Eis o teor do artigo 22 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Lind), inserido pela Lei nº 13.655/2018. Não obstante a ratio que motivou a edição do dispositivo — associada à ideia de, em coerência com o princípio da juridicidade, abrir-se espaço para ponderações legítimas entre os obstáculos presentes na realidade do gestor público, de um lado, e o cumprimento estrito das exigências legais, de outro, é preciso um cuidado maior na sua aplicação, notadamente à luz da conquista e universalização dos direitos e garantias fundamentais.

Uma leitura apressada, imediatista e descontextualizada do dispositivo legal pode imprimir falsas impressões daquilo que de fato se pretendeu positivar. Aliás, o risco não é trivial. Lembre-se dos entendimentos estanques em torno da compreensão do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que perduraram por um bom tempo na literatura. Propunha-se e defendia-se uma concepção fechada, rígida, não raro associada exclusivamente ao atendimento aos interesses da própria Administração, o que ensejou uma profícua proliferação de pesquisas acadêmicas em torno da sua releitura. Pode-se dizer que experimentamos uma trajetória marcada por avanços e retrocessos no Direito
Administrativo.

A experiência havida quanto ao princípio em questão ascende preocupações em torno da leitura — simplista — que vem sendo a do artigo 22. Cada vez mais podem ser verificados “jargões” do tipo: Primado da realidade, Supremacia da realidade, A realidade prepondera sobre o Direito, e, ainda, A realidade vence o Direito. Frases que fomentam o risco de proliferação de ideias, impressões, opiniões ou, o que é pior, tendências a legitimar o ilegitimável aos olhos do sistema jurídico. Não há dissonância entre Direito e Realidade. A relação entre eles é indissociável, e sobrevém especialmente quando se investiga a efetividade do direito posto.

É de se rememorar, em termos de controle preventivo, a importância do elemento sistemático de interpretação jurídica. A aplicação da norma deve buscar harmonia com os valores esculpidos no ordenamento jurídico, com destaque para o princípio da segurança jurídica, o qual, aliás, foi a fonte inspiradora da alteração da Lindb.

Rememorando trecho parcial do artigo intitulado “A regulação normativa e o critério da segurança jurídica”, publicado aqui na ConJur, em 26 de outubro de 2021, a segurança jurídica requer mais do que clareza para que se possa atender aos desafios atuais. O princípio demanda a realização de esforços ativos no sentido de se removerem obstáculos à participação dos cidadãos na vida política, econômica, jurídica e social. Em poucas palavras, compete às autoridades públicas promover condições para que os princípios da liberdade e igualdade dos cidadãos sejam efetivamente usufruídos.

Pela natureza das responsabilidades e equilíbrio dos interesses em jogo, um dos eixos determinantes da segurança jurídica é a confiabilidade na manutenção de um balanço equilibrado, com respeito ao papel dos diversos atores sociais. É crucial, portanto, lançar novo olhar à manutenção da ordem, função classicamente entranhada no rol das competências exclusivas do Estado. A complexidade dos desafios a enfrentar e os efeitos da difusão e propagação dos riscos ampliaram consideravelmente seu alcance, reclamando, em reforço à coesão social e segurança jurídica, mobilização de vários níveis de intervenção e o concurso de vários atores públicos e privados.

A segurança jurídica demanda, a um só tempo, responsabilidade organizacional dos contextos nos quais serão tomadas as decisões públicas.

Conjugando os valores em questão com a mens legis do artigo 22 da LINDB, é fácil concluir o cuidado que se deve ter na aplicação desta comando, particularmente para que não se torne um grande “coringa” capaz de justificar toda e qualquer omissão administrativa em detrimento do “Direito”.

Em outras palavras, em nome do equilíbrio organizacional e diversidade dos desafios que se espraiam na federação, o artigo 22 pode funcionar, caso não utilizado com cautela, como arbitrário salvo-conduto ao não cumprimento das premissas legais em razão da realidade específica do ente federativo questão, o que pode colocar em xeque a garantia dos direitos fundamentais do cidadão e da própria legalidade.

Se estiver em jogo conflito de interesses entre valores constitucionais, o intérprete tem ao seu alcance o manejo da ferramenta da ponderação de interesses. Resumidamente, expressa a tônica do alcance do ponto ótimo, em que a restrição de cada um dos direitos fundamentais envolvidos na análise do caso concreto seja a menor possível, na medida exata à salvaguarda do princípio da segurança jurídica, sem perder de vista as circunstâncias, possibilidades e pesos aos elementos jurídicos que se entrelaçam para o deslinde da matéria.

Eis aí, em linha com a cultura da gestão dos riscos, um risco jurídico, assim concebido como a probabilidade de lesão aos direitos, que deve ser atenta e cuidadosamente gerenciado, evitando-se que se torne, segundo a professora Irene Nohara uma “brecha capciosa” para alegações como a seguinte: não tendo a realidade permitido cumprir adequadamente as exigências legais, seria “possível” deixa de lado direitos e garantias.

“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”: a virtude está no meio, como de há muito ensinou Aristóteles. Meio esse que, no caso do artigo 22 da Lindb, não se alcança nem pela aplicação irresponsável do Direito em detrimento da realidade, nem pela omissão negligente do gestor que invoque a realidade para deixar de aplicar o Direito. São construções em cada caso e, sobretudo, motivadas, que poderão trazer à tona a aplicação legítima do dispositivo legal, sem que direitos e garantias fundamentais sejam fragilizados.

Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Edipro: São Paulo, 2003.
MENDES, Flavine Meghy Metne. A regulação normativa e o critério da segurança jurídica. Consultor Jurídico. Artigo publicado em 26 de outubro de 2021.
NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. Atlas: São Paulo, 2019.

SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001.
Alice Voronoff é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diretora acadêmica do Instituto de Direito
Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.
Flavine Meghy Metne Mendes é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos, conferencista, consultora jurídica,
doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

Poder Judiciário não é perfeito, mas assegura democracia, diz Binenbojm

Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.

Pensar no Poder Judiciário como um ator político que cumpre inteiramente o seu papel é idealizar demais as instituições políticas. A avaliação é de Gustavo Binenbojm, professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

O especialista em Direito Administrativo é um dos participantes do X Fórum Jurídico de Lisboa, organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Para Binenbojm, o Judiciário se tornou “protagonista do processo político” no país a partir do século 20 mesmo sem ter “todos os equipamentos para sê-lo”.

Mas isso não significa que o órgão não seja capaz de “cumprir a contento” todas suas prerrogativas. “As contribuições trazidas pelo Judiciário envolvem assegurar a segurança jurídica e o cumprimento das normas do Estado Democrático de Direito”, diz o professor à ConJur.

Binenbojm analisa que, no mundo dos negócios, há uma tendência crescente de “desestatização da Justiça”, com o uso de mecanismos privados, de mediação, de conciliação e arbitragem para solução de litígios.

Embora esses instrumentos alternativos tenham potencial de reduzir o grau de litigiosidade do Judiciário, o professor aponta que é necessário aumentar o seu grau de institucionalidade para evitar que, ao invés de ajudar, esses mecanismos acabem aumentando o número de ações judiciais.

“Essas melhorias podem ser feitas com avanços em termos de governança e padrão de segurança jurídica”, diz. “Esse é um paradoxo que enfrentamos no Brasil, mas não é algo que deve nos desestimular. Deve nos incentivar a buscar soluções para os problemas institucionais e não uma desistência a priori desses caminhos”.

O X Fórum Jurídico de Lisboa conta com o apoio da FGV Conhecimento, do Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud), do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE) e do escritório Décio Freire Advogados.

Boas intenções não bastam: a ANP e os riscos do apagão de investimentos

Por Gustavo Binenbojm
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.

No último dia 22, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis realizou a Audiência Pública nº 27/2021. Estavam em discussão as propostas da autarquia para a regulação do acesso de terceiros aos terminais aquaviários, para movimentação de petróleo, seus derivados e de biocombustíveis, na forma do artigo 58 da Lei nº 9.478/1997 (Lei do Petróleo).

Nela, associações representativas do setor e experts manifestaram-se quanto aos prováveis efeitos sistêmicos da resolução proposta, ressaltando que aspectos centrais da minuta contrariam a racionalidade do setor portuário em geral e do transporte de petróleo e derivados, em específico. O alerta, aliás, vem na esteira das colaborações ofertadas pelo Ministério da Infraestrutura e pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários durante as duas consultas públicas realizadas, que foram enfaticamente contrárias a aspectos da norma proposta.

Essa sinalização, por agentes públicos e privados, de que a questão ainda demanda reflexão e amadurecimento, não deve ser ignorada. O tema é importantíssimo para a atração de investimentos e desenvolvimento da infraestrutura portuária no país e as modificações pretendidas pela ANP alteram sensivelmente o quadro normativo atual. De um lado, sob a alegação de que seria necessário dar tratamento isonômico a todo o mercado, a agência pretende estender aos agentes econômicos em geral a regra contida no artigo 65 da Lei do Petróleo, que é dirigida especificamente à Petrobras. Procura impor, por essa via, a desverticalização obrigatória da atividade de operação de terminais,ignorando que grande parte da indústria de petróleo, seus derivados e biocombustíveis, ao redor do mundo, é verticalizada por razões de eficiência associadas à atividade específica nesse setor. De outro lado, a ANP restringe o direito legal de preferência na utilização das infraestruturas portuárias, limitando a sua incidência à figura da pessoa jurídica que for, simultaneamente, titular da instalação portuária e proprietária dos produtos regulados movimentados.

A agência afirma que essas medidas seriam necessárias para mitigar supostos incentivos econômicos que levariam à subutilização das instalações portuárias,prejudicando o acesso de terceiros. Mas a ANP não demonstrou a existência da atuação anticoncorrencial que pretende combater. Nem sopesou concretamente —como demanda o artigo 4º da Lei de Liberdade Econômica (LLE) — os custos e benefícios dessa nova regulação. Alternativas regulatórias mais brandas não foram consideradas — não se estudou, e.g., incrementar o sistema de fiscalização ex post nos casos de discriminação no acesso aos terminais. O primeiro e único caminho cogitado foi a alteração da lógica de funcionamento do mercado, restringindo ex ante a liberdade dos agentes econômicos envolvidos, criando custos de transação e proibindo arranjos societários hoje usuais, em contrariedade ao artigo 4º, V e VII da LLE.

Veja-se que a desverticalização impõe a criação de novas pessoas jurídicas voltadas, quase que exclusivamente, à operação logística de terminais, reduzindo os ganhos de escala decorrentes da atividade verticalizada. Impõe, também, a contratação dessas pessoas jurídicas mesmo nas hipóteses em que a figura do operador seria dispensável, nos termos do artigo 28, II, “d”, da Lei dos Portos (Lei n. 12.815/2013). A pretensão de aplicar, por isonomia, o artigo 65 da Lei do Petróleo a todos os agentes econômicos, aliás, surgiu sem que antes fosse estudada a própria pertinência dessa regra no cenário jurídico e econômico atual.

Já a limitação do direito de preferência às hipóteses em que o proprietário da carga também é titular da outorga ignora que, frequentemente, os grupos econômicos criam sociedades de propósito específico (SPEs) para explorar a infraestrutura portuária, seja como estratégia gerencial, seja por imposição dos editais de licitação das outorgas de terminais. Essas SPEs, embora titulares da infraestrutura portuária, nunca serão proprietárias de carga. A consequência prática é que, nessas situações, os acionistas da SPE, conquanto tenham investido na otimização e ampliação das instalações portuárias, jamais gozarão do direito de preferência disposto na Lei do Petróleo. No limite, esses acionistas podem repensar a vantajosidade da realização de investimentos para o aumento da capacidade de movimentação dos terminais, já que não terão garantida a preferência na sua utilização.

O resultado da intervenção regulatória da ANP, enfim, pode ser contrário aos exatos objetivos buscados pela agência, desincentivando investimentos em infraestrutura portuária e criando custos de transação que reduzam a eficiência e competitividade do mercado. Isso é ainda mais grave quando se percebe que a ANP não demonstrou sequer que os gargalos na movimentação de petróleo, seus derivados e de biocombustíveis, decorrem de discriminação no acesso aos terminais existentes. A própria agência reconhece que não tem dados suficientes sobre os pedidos de acesso negados [1]. Caso a raiz do problema seja um déficit de infraestrutura portuária — e não o cerceamento injustificado ao acesso de terceiros à infraestrutura existente —, o remédio proposto pela agência poderá ter efeitos colaterais piores do que a doença que ela pretende tratar.

As justificativas da ANP para não realizar uma prévia análise de impacto regulatório no caso concreto são frágeis. Mesmo que não fossem, porém, a verdade é que uma discussão sobre a incidência ou não das exceções à AIR no caso concreto ocultaria o real problema. Propostas regulatórias visam mitigar problemas reais. Se aprovadas, incidirão sobre agentes econômicos reais e terão desdobramentos jurídicos, econômicos e sociais concretos. O processo de formação de uma nova regulação setorial, por isso, não pode se contentar com digressões teóricas guiadas por impressões e pelo senso comum do regulador.

Dito de outra forma: para validar a sua visão, o regulador precisa fazer mais do que afirmar a busca por valores abstratos como a eficiência ou a concorrência. Ele deve demonstrar que os meios que pretende utilizar realmente levarão ao fim almejado e dizer por que são preferíveis a alternativas regulatórias menos intrusivas. Com ou sem AIR, o dever de motivação racional imposto, constitucional e legalmente, à Administração Pública só é cumprido quando os planos teórico e prático convergem e a proposta normativa é testada diante de estudos prognósticos concretos. Boas intenções são bem-vindas, mas não bastam.

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Nota Técnica: nº 08/2018-SIM consignou que “atualmente, as solicitações de acesso não são enviadas compulsoriamente para a ANP. Assim sendo, a formada Agência tomar conhecimento de eventuais problemas no acesso de terceiros seria por fiscalização preventiva com vistas a analisar especificamente as solicitações de acesso ou por denúncia dos requerentes, em especial, dos que tiveram seus pedidos de acesso efetivamente negados”. Na mesma linha, veja-se que19/10/2022 11:55 ConJur – Gustavo Binenbojm: A ANP e os riscos do apagão de investimentos https://www.conjur.com.br/2022-abr-03/gustavo-binenbojm-anp-riscos-apagao-investimentos?imprimir=12/2a Nota Técnica nº 011/2019 afirma que “o encaminhamento das Negativas de Acesso para a ANP visa a garantir que essa autarquia tome conhecimento dos pedidos de uso do terminal que não estão sendo atendidos, uma vez que uma das principais dificuldades enfrentadas pela ANP é a ausência, atualmente, de monitoramento regulatório sistematizado, isto é, não há indicador que permita avaliar o funcionamento da regulação do acesso, o que pode começar a ser efetivado por meio das estatísticas de evolução dos pedidos negados”. Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela Uerj emaster of laws (LL.M.) pela Yale Law School (EUA)