Errar é humano. E, ao que parece, reincidir no erro também. A Lei 14.133/2021, obstinadamente, instituiu um verdadeiro código de licitações e contratações públicas, tratando da matéria de forma exaustiva e sistematizada. Como já o fizera a Lei 8.666/1993, o art. 1º do novo diploma proclama que todas as suas normas são gerais, independentemente de seu conteúdo específico. Retornamos, assim, ao problema do regime anterior: o constituinte (CF, art. 22, XVII, na forma da EC 19/98) delegou ao Congresso o poder para redefinir o conceito de norma geral ou o legislador, ao entrar em tantos detalhes, acabou editando normas específicas, obrigatórias apenas para a Administração federal e não para os entes subnacionais?
Ao julgar a ADI 927 (do relator, ministro Carlos Velloso), o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que normas da Lei 8.666/1993 que limitavam doações e permutas com bens públicos eram específicas – portanto apenas federais, não nacionais. Estados e municípios poderiam legislar, quanto ao tema, de modo diverso. Mas como generalizar o critério, se o conceito de norma geral é do tipo indeterminado?
Na ADI 4.658 (relator, ministro Edson Fachin), a corte invalidou lei paranaense que ampliara hipótese de dispensa de licitação, enquanto na ADPF 282/RO (relator, ministro Gilmar Mendes) derrubou a lei municipal que criara modalidade de PPP para mera execução de obra pública. Em ambos os casos a norma geral foi tida como violada. Já nas ADPFs 971, 987 e 992 (relator, ministro Gilmar Mendes), o STF validou lei do município de São Paulo que permitia a prorrogação e a relicitação de contratos de concessão de maneira distinta da norma federal.
A Lei 14.133/2021 incorporou leis e decretos federais, além da jurisprudência do TCU. Nela há dispositivos situados na zona de certeza negativa do conceito de norma geral – como os que tratam de meios de pagamento (art. 75, §4º), critérios para “carona” em atas de registro de preços (art. 86) e atuação dos advogados públicos (art. 10) – como outros posicionados, no mínimo, na chamada zona de incerteza – como a definição de quem pode ser agente de contratação (art. 6º, LX), os critérios para cálculo da estimativa orçamentária (art. 23, §1º e 3º) e da margem de preferência para bens e serviços nacionais e sustentáveis (art. 26).
Respeitada a zona de certeza positiva do conceito de norma geral (modalidades e tipos de licitação; exceções ao dever de licitar; requisitos de existência válida dos contratos e alguns outros), a cada ente federativo compete fazer as escolhas normativas adequadas a suas necessidades e peculiaridades, especialmente nos campos de gestão financeira, patrimonial e de servidores. Essas são matérias típicas da esfera intestina de cada unidade federada. Para as situações de incerteza, deve-se reconhecer uma margem de apreciação aos entes subnacionais, protegida por algum grau de deferência judicial, pois só eles podem avaliar as dificuldades e obstáculos concretos à implementação do novo regime licitatório. Com isso, preserva-se também um espaço de experimentação institucional, para testes de modelos inovadores nos níveis local e regional, contra a postura excessivamente centralizadora do legislador federal.