Poder Judiciário não é perfeito, mas assegura democracia, diz Binenbojm

Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.

Pensar no Poder Judiciário como um ator político que cumpre inteiramente o seu papel é idealizar demais as instituições políticas. A avaliação é de Gustavo Binenbojm, professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

O especialista em Direito Administrativo é um dos participantes do X Fórum Jurídico de Lisboa, organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Para Binenbojm, o Judiciário se tornou “protagonista do processo político” no país a partir do século 20 mesmo sem ter “todos os equipamentos para sê-lo”.

Mas isso não significa que o órgão não seja capaz de “cumprir a contento” todas suas prerrogativas. “As contribuições trazidas pelo Judiciário envolvem assegurar a segurança jurídica e o cumprimento das normas do Estado Democrático de Direito”, diz o professor à ConJur.

Binenbojm analisa que, no mundo dos negócios, há uma tendência crescente de “desestatização da Justiça”, com o uso de mecanismos privados, de mediação, de conciliação e arbitragem para solução de litígios.

Embora esses instrumentos alternativos tenham potencial de reduzir o grau de litigiosidade do Judiciário, o professor aponta que é necessário aumentar o seu grau de institucionalidade para evitar que, ao invés de ajudar, esses mecanismos acabem aumentando o número de ações judiciais.

“Essas melhorias podem ser feitas com avanços em termos de governança e padrão de segurança jurídica”, diz. “Esse é um paradoxo que enfrentamos no Brasil, mas não é algo que deve nos desestimular. Deve nos incentivar a buscar soluções para os problemas institucionais e não uma desistência a priori desses caminhos”.

O X Fórum Jurídico de Lisboa conta com o apoio da FGV Conhecimento, do Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud), do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE) e do escritório Décio Freire Advogados.

Boas intenções não bastam: a ANP e os riscos do apagão de investimentos

Por Gustavo Binenbojm
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.

No último dia 22, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis realizou a Audiência Pública nº 27/2021. Estavam em discussão as propostas da autarquia para a regulação do acesso de terceiros aos terminais aquaviários, para movimentação de petróleo, seus derivados e de biocombustíveis, na forma do artigo 58 da Lei nº 9.478/1997 (Lei do Petróleo).

Nela, associações representativas do setor e experts manifestaram-se quanto aos prováveis efeitos sistêmicos da resolução proposta, ressaltando que aspectos centrais da minuta contrariam a racionalidade do setor portuário em geral e do transporte de petróleo e derivados, em específico. O alerta, aliás, vem na esteira das colaborações ofertadas pelo Ministério da Infraestrutura e pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários durante as duas consultas públicas realizadas, que foram enfaticamente contrárias a aspectos da norma proposta.

Essa sinalização, por agentes públicos e privados, de que a questão ainda demanda reflexão e amadurecimento, não deve ser ignorada. O tema é importantíssimo para a atração de investimentos e desenvolvimento da infraestrutura portuária no país e as modificações pretendidas pela ANP alteram sensivelmente o quadro normativo atual. De um lado, sob a alegação de que seria necessário dar tratamento isonômico a todo o mercado, a agência pretende estender aos agentes econômicos em geral a regra contida no artigo 65 da Lei do Petróleo, que é dirigida especificamente à Petrobras. Procura impor, por essa via, a desverticalização obrigatória da atividade de operação de terminais,ignorando que grande parte da indústria de petróleo, seus derivados e biocombustíveis, ao redor do mundo, é verticalizada por razões de eficiência associadas à atividade específica nesse setor. De outro lado, a ANP restringe o direito legal de preferência na utilização das infraestruturas portuárias, limitando a sua incidência à figura da pessoa jurídica que for, simultaneamente, titular da instalação portuária e proprietária dos produtos regulados movimentados.

A agência afirma que essas medidas seriam necessárias para mitigar supostos incentivos econômicos que levariam à subutilização das instalações portuárias,prejudicando o acesso de terceiros. Mas a ANP não demonstrou a existência da atuação anticoncorrencial que pretende combater. Nem sopesou concretamente —como demanda o artigo 4º da Lei de Liberdade Econômica (LLE) — os custos e benefícios dessa nova regulação. Alternativas regulatórias mais brandas não foram consideradas — não se estudou, e.g., incrementar o sistema de fiscalização ex post nos casos de discriminação no acesso aos terminais. O primeiro e único caminho cogitado foi a alteração da lógica de funcionamento do mercado, restringindo ex ante a liberdade dos agentes econômicos envolvidos, criando custos de transação e proibindo arranjos societários hoje usuais, em contrariedade ao artigo 4º, V e VII da LLE.

Veja-se que a desverticalização impõe a criação de novas pessoas jurídicas voltadas, quase que exclusivamente, à operação logística de terminais, reduzindo os ganhos de escala decorrentes da atividade verticalizada. Impõe, também, a contratação dessas pessoas jurídicas mesmo nas hipóteses em que a figura do operador seria dispensável, nos termos do artigo 28, II, “d”, da Lei dos Portos (Lei n. 12.815/2013). A pretensão de aplicar, por isonomia, o artigo 65 da Lei do Petróleo a todos os agentes econômicos, aliás, surgiu sem que antes fosse estudada a própria pertinência dessa regra no cenário jurídico e econômico atual.

Já a limitação do direito de preferência às hipóteses em que o proprietário da carga também é titular da outorga ignora que, frequentemente, os grupos econômicos criam sociedades de propósito específico (SPEs) para explorar a infraestrutura portuária, seja como estratégia gerencial, seja por imposição dos editais de licitação das outorgas de terminais. Essas SPEs, embora titulares da infraestrutura portuária, nunca serão proprietárias de carga. A consequência prática é que, nessas situações, os acionistas da SPE, conquanto tenham investido na otimização e ampliação das instalações portuárias, jamais gozarão do direito de preferência disposto na Lei do Petróleo. No limite, esses acionistas podem repensar a vantajosidade da realização de investimentos para o aumento da capacidade de movimentação dos terminais, já que não terão garantida a preferência na sua utilização.

O resultado da intervenção regulatória da ANP, enfim, pode ser contrário aos exatos objetivos buscados pela agência, desincentivando investimentos em infraestrutura portuária e criando custos de transação que reduzam a eficiência e competitividade do mercado. Isso é ainda mais grave quando se percebe que a ANP não demonstrou sequer que os gargalos na movimentação de petróleo, seus derivados e de biocombustíveis, decorrem de discriminação no acesso aos terminais existentes. A própria agência reconhece que não tem dados suficientes sobre os pedidos de acesso negados [1]. Caso a raiz do problema seja um déficit de infraestrutura portuária — e não o cerceamento injustificado ao acesso de terceiros à infraestrutura existente —, o remédio proposto pela agência poderá ter efeitos colaterais piores do que a doença que ela pretende tratar.

As justificativas da ANP para não realizar uma prévia análise de impacto regulatório no caso concreto são frágeis. Mesmo que não fossem, porém, a verdade é que uma discussão sobre a incidência ou não das exceções à AIR no caso concreto ocultaria o real problema. Propostas regulatórias visam mitigar problemas reais. Se aprovadas, incidirão sobre agentes econômicos reais e terão desdobramentos jurídicos, econômicos e sociais concretos. O processo de formação de uma nova regulação setorial, por isso, não pode se contentar com digressões teóricas guiadas por impressões e pelo senso comum do regulador.

Dito de outra forma: para validar a sua visão, o regulador precisa fazer mais do que afirmar a busca por valores abstratos como a eficiência ou a concorrência. Ele deve demonstrar que os meios que pretende utilizar realmente levarão ao fim almejado e dizer por que são preferíveis a alternativas regulatórias menos intrusivas. Com ou sem AIR, o dever de motivação racional imposto, constitucional e legalmente, à Administração Pública só é cumprido quando os planos teórico e prático convergem e a proposta normativa é testada diante de estudos prognósticos concretos. Boas intenções são bem-vindas, mas não bastam.

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Nota Técnica: nº 08/2018-SIM consignou que “atualmente, as solicitações de acesso não são enviadas compulsoriamente para a ANP. Assim sendo, a formada Agência tomar conhecimento de eventuais problemas no acesso de terceiros seria por fiscalização preventiva com vistas a analisar especificamente as solicitações de acesso ou por denúncia dos requerentes, em especial, dos que tiveram seus pedidos de acesso efetivamente negados”. Na mesma linha, veja-se que19/10/2022 11:55 ConJur – Gustavo Binenbojm: A ANP e os riscos do apagão de investimentos https://www.conjur.com.br/2022-abr-03/gustavo-binenbojm-anp-riscos-apagao-investimentos?imprimir=12/2a Nota Técnica nº 011/2019 afirma que “o encaminhamento das Negativas de Acesso para a ANP visa a garantir que essa autarquia tome conhecimento dos pedidos de uso do terminal que não estão sendo atendidos, uma vez que uma das principais dificuldades enfrentadas pela ANP é a ausência, atualmente, de monitoramento regulatório sistematizado, isto é, não há indicador que permita avaliar o funcionamento da regulação do acesso, o que pode começar a ser efetivado por meio das estatísticas de evolução dos pedidos negados”. Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela Uerj emaster of laws (LL.M.) pela Yale Law School (EUA)