Relicitação, promessa não realizada e a busca de alternativas pela ANTT

Alice Voronoff1

Jeaninny Teixeira2

O instituto da “relicitação” dos contratos de parceria foi inserido na ordem jurídica brasileira pela Medida Provisória nº 752/2016, que veio a ser convertida na Lei nº 13.448, de 5 de junho de 2017 (“Lei de Relicitação”). Com o objetivo de ampliar investimentos em setores importantes da infraestrutura nacional3, o procedimento foi concebido como mecanismo consensual aplicável aos contratos de concessão dos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da Administração Pública federal, qualificados no âmbito do Programa de Parceria de Investimentos – “PPI”, definidos nos termos da Lei nº 13.334/2016.

A ideia central foi instituir uma hipótese de extinção amigável e célere do contrato de concessão, para além daquelas elencadas no art. 35 da Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões)4, que desse conta de assegurar a continuidade da prestação do serviço em casos de inadimplemento do contrato ou incapacidade da concessionária para cumprir com suas obrigações contratuais e financeiras (art. 13 da Lei de Relicitação)5.

Até o advento da MP nº 752/2016, de acordo com o disposto na Lei nº 8.987/95 (Lei de Concessões), situações extremas de inexecução contratual por parte da concessionária poderiam ensejar a extinção unilateral do contrato por caducidade, a critério do poder concedente (art. 38). A decretação da caducidade, no entanto, além de exigir processo administrativo prévio para verificação da inadimplência, o que demanda certo lapso temporal, não se presta a resolver o problema da prestação ineficiente do serviço público que a motivou. Isso porque a necessidade de assunção imediata dos serviços e a indenização devida à concessionária (arts. 35, § 2º e 38, § 5º da Lei de Concessões) fazem recair sobre o Poder Concedente ônus financeiro relevante, seja para assumir a prestação do serviço público, seja por, em qualquer caso, precisar indenizar a concessionária pelos investimentos não amortizados.

Previu-se, assim, um “procedimento que compreende a extinção amigável do contrato de parceria e a celebração de novo ajuste negocial para o empreendimento, em novas condições contratuais e com novos contratados, mediante licitação promovida para esse fim” (art. 4º). Com ele, veio a promessa de uma solução mais eficiente e menos onerosa para as partes. Um antídoto para remediar a questão da prestação ineficiente do serviço público de forma célere ao suspender as obrigações de investimento vincendas da concessionária, bem como estabelecer as condições mínimas sob as quais os serviços deverão continuar sendo prestados pelo atual contratado até a assinatura do novo contrato de parceria (art. 15, I e II), além de permitir que a indenização ao contratado original seja paga pela nova concessionária (art. 15, § 1º, I e II)6.

Promessa bem-intencionada, mas não realizada.

Apesar de a solução legislativa ter se apresentado, em um primeiro momento, como promissora para solucionar o problema das concessões em crise, na prática, o que se percebe é que há dificuldades para que os processos de relicitação avancem e novas empresas assumam as concessões. É que, para que o mecanismo seja levado a efeito e seja realizada uma nova licitação, há uma série de parâmetros legais e regulamentares, detalhados pelo Decreto nº 9.957/2019, que engessaram e tornaram esse procedimento moroso7. Além disso, os processos começam, mas não têm data certa para terminar. Apesar da previsão legal de 24 meses para conclusão do processo de relicitação, admitem-se prorrogações sucessivas, nos termos do art. 20, §§ 1º e 2º da Lei de Relicitação8.

Um exemplo que retrata a morosidade para a conclusão do procedimento de relicitação envolve a devolução do aeroporto de São Gonçalo do Amarante, primeiro aeroporto submetido ao procedimento. A relicitação se iniciou em 2020 e foi aprovada pelo TCU apenas em janeiro de 20239, após longas discussões técnicas quanto à definição do valor da indenização a ser paga à antiga concessionária. No momento, aguarda-se a realização do leilão para a escolha da nova concessionária, previsto para o próximo dia 19 de maio10.

No setor rodoviário, as perspectivas também não são nada animadoras. O pedido de relicitação da BR 040/DF-GO-MG, da Via 040, recebeu manifestação favorável da ANTT em novembro de 201911 e foi qualificado no PPI em fevereiro de 202012. Em outubro de 2021, por não haver tempo hábil para a conclusão das etapas da licitação, a ANTT recomendou a prorrogação do prazo do procedimento de relicitação e do 1º Termo Aditivo13, que, logo após, precisou ser novamente prorrogado por mais 18 meses14, com término em agosto de 2023. Há, ainda, outras concessões que seguem em processo de relicitação perante a ANTT, ainda sem perspectivas de conclusão, como a BR-163/MS, da MSVias; BR-060-153-262/DF-GO-MG, da Concebra; BR-101/RJ, Autopista Fluminense – Arteris; e BR-101/ES-BA, da EcoRodovias.

No ano de 2021, em meio a inúmeras dificuldades, a Rota do Oeste, concessionária da BR-163/MT, controlada pela OTP – Odebrecht Transport, se propôs a aderir à relicitação. Diante de diversos entraves quanto ao procedimento, como alternativa à relicitação, o governo do Estado do Mato Grosso apresentou proposta de assumir a rodovia e as obrigações de execução de investimentos por meio da transferência de controle da concessionária. O controle da companhia foi, então, transferido à MT Participações e Projetos S.A., sociedade de economia mista mato-grossense, que se encarregará de investir cerca de R$ 1,6 bilhão na concessionária15. Apesar do êxito da solução adotada, que contou até mesmo com o aval do Tribunal de Contas da União, o mecanismo foi fruto de um acordo entre poderes públicos que dificilmente poderia ser replicado nesses termos para outros casos.

Diante desse cenário de dificuldades quanto à implementação da figura da relicitação, tem chamado atenção o esforço da ANTT de buscar soluções para sanear os contratos de concessão em crise. A Agência, dentro das soluções que já existem no ordenamento jurídico, vem tentando adotar espécies de steps anteriores à relicitaçao para viabilizar a continuidade dos projetos. Três soluções se destacam16.

A primeira delas é tentar transformar o atual modelo de revisão quinquenal em uma repactuação ampla dos contratos de concessão. A proposta já havia sido aventada pela Diretoria da Agência em 2018, em uma audiência na Comissão de Viação e Transportes da Câmara17. Agora, foi incorporada na nova minuta da Terceira Norma do Regulamento de Concessões Rodoviárias (RCR3), que trata do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão e está em fase de recebimento de contribuições, que se encerrou no último dia 12 de maio18. De acordo com a minuta de regulamento, a revisão quinquenal passará a ser denominada de “Repactuação de Investimentos e Parâmetros de Serviço” e poderá envolver “inclusão, alteração, reprogramação ou exclusão de obras e serviços ou alteração de escopo, parâmetros técnicos e de desempenho previstos no contrato de concessão19.

A segunda, também prevista na minuta do RCR3, é o de uma “troca de controle incentivada” ou “transferência assistida”, a exemplo da já citada operação de troca acionária acordada entre o governo de Mato Grosso e a Rota do Oeste. O Relatório de Análise de Impacto Regulatório que embasou a minuta da ANTT aponta a necessidade de regulamentar formas alternativas de transferência do controle da concessão, prevista na Resolução ANTT nº 5.927/2021, e que o objetivo do regulamento é “fazer a troca de controle, apresentando alguns incentivos, por meio de flexibilidades contratuais, para o interessado pela concessão, como forma de manter a continuidade dos serviços, sem ruptura contratual20.

Previu-se, dentro de um RRR (“Regime de Recuperação Regulatória”), um rol de medidas a serem adotadas nesse período, dentre as quais a transferência de controle societário da concessionária21. O procedimento conta com uma espécie de chamamento público para recebimento de contribuições de interessados, que poderão negociar a transferência de controle societário.

Por fim, uma terceira frente de soluções estudadas pela ANTT é tentar acelerar os próprios processos de relicitação, simplificando-os. Uma das possibilidades para tornar o processo expedito é permitir que as próprias concessionárias realizem os Estudos de Viabilidade Técnico-Econômica e Ambiental (EVTEAs)22 que embasarão a nova licitação, o que adiantaria a análise a ser realizada pelo TCU.

Como se pode ver, as relicitações não estão dando conta de assegurar que a devolução de contratos de concessão ocorra com a celeridade esperada. Assim, é louvável que a ANTT busque alternativas, ao invés de “lavar suas mãos”. A proatividade da Agência, que estuda soluções criativas, mas aderentes ao ordenamento jurídico em vigor, pode servir de excelente inspiração para outros setores, como o da aviação. Tudo isso em prol da continuidade de projetos importantes de concessão de infraestrutura, bem como da melhoria da prestação de serviços públicos aos usuários.

1 Sócia de Gustavo Binenbojm & Associados.

2 Advogada de Gustavo Binenbojm & Associados.

3 V. Exposição de motivos da MP nº 752/2016 (EMI nº 00306/2016 MP MTPA, de 7 de novembro de 2016). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Exm/Exm-MP-752-16.pdf. Acesso em: 06/05/2023.

4 “Art. 35. Extingue-se a concessão por: I – advento do termo contratual; II – encampação; III – caducidade; IV – rescisão; V – anulação; e VI – falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual”.

5 “Art. 13. Com o objetivo de assegurar a continuidade da prestação dos serviços, o órgão ou a entidade competente poderá realizar, observadas as condições fixadas nesta Lei, a relicitação do objeto dos contratos de parceria nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário cujas disposições contratuais não estejam sendo atendidas ou cujos contratados demonstrem incapacidade de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas originalmente.”

6 Art. 15. A relicitação do contrato de parceria será condicionada à celebração de termo aditivo com o atual contratado, do qual constarão, entre outros elementos julgados pertinentes pelo órgão ou pela entidade competente: § 1º Também poderão constar do termo aditivo de que trata o caput deste artigo e do futuro contrato de parceria a ser celebrado pelo órgão ou pela entidade competente: I – a previsão de que as indenizações apuradas nos termos do inciso VII do § 1º do art. 17 desta Lei serão pagas pelo novo contratado, nos termos e limites previstos no edital da relicitação; II – a previsão de pagamento, diretamente aos financiadores do contratado original, dos valores correspondentes às indenizações devidas pelo órgão ou pela entidade competente nos termos do inciso VII do § 1º do art. 17 desta Lei.”

7 A concessionária que decida aderir à relicitação precisa apresentar requerimento formal à agência reguladora competente (art. 3º), que se manifestará quanto à viabilidade jurídica e técnica do procedimento (art. 4º) e submeterá à manifestação do Ministério da Infraestrutura sobre a compatibilidade do requerimento com o escopo da política pública delineada para o setor (art. 5º). Na sequência, o processo seguirá para deliberação do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República para fins de qualificação no PPI (art. 6º). E, com a qualificação do empreendimento no PPI, será então celebrado termo aditivo com a atual concessionária (art. 15 da Lei nº 13.448/2017).

8 “Art. 20. Na hipótese de não acudirem interessados para o processo licitatório previsto no art. 13 desta Lei, o contratado deverá dar continuidade à prestação do serviço público, nas condições previstas no inciso II do caput do art. 15 desta Lei, até a realização de nova sessão para recebimento de propostas. § 1º Se persistir o desinteresse de potenciais licitantes ou não for concluído o processo de relicitação no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, contado da data da qualificação referida no art. 2º desta Lei, o órgão ou a entidade competente adotará as medidas contratuais e legais pertinentes, revogando o sobrestamento das medidas destinadas a instaurar ou a dar seguimento a processo de caducidade anteriormente instaurado, na forma da lei. § 2º O prazo de que trata o § 1º deste artigo poderá ser prorrogado por sucessivas vezes, desde que o total dos períodos de prorrogação não ultrapasse 24 (vinte e quatro) meses, mediante deliberação do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (CPPI).” (Redação dada pela Lei nº 14.368, de 2022)

9 Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-aprova-concessao-do-aeroporto-de-sao-goncalo-do-amarante-rn-com-condicionantes.htm. Acesso em: 06/05/2023.

10 Disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/noticias/2023/02/edital-de-relicitacao-do-aeroporto-de-sao-goncalo-do-amarante-rn-e-publicado. Acesso em: 06/05/2023.

11 Deliberação nº 1.015, de 26 de novembro de 2019. DOU de 28/11/2019.

12 Decreto nº 10.248, de 18 de fevereiro de 2020. DOU de 19/02/2020.

13 Deliberação nº 336, de 7 de outubro de 2021. DOU de 08/10/2021.

14 Cf. Extrato de Termo Aditivo publicado no DOU de 21/02/2022.

15 Disponível em: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/mt-par-assume-concessao-da-br-163-mt. Acesso em: 06/05/2023.

16 O destaque aos três mecanismos foi feito pelo Rafael Vitale Rodrigues, Diretor Geral da ANTT, em entrevista ao Podcast INFRACAST. Cf. INFRACAST #92: O que esperar da regulação do setor rodoviário e ferroviário? Entrevistado: Rafael Vitale. Entrevistador: Fernando Marcato. [S. l.]: 25/04/2023. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/66guqP33gDMqApQ1cyiE1z?si=x0VyjgLGTiuBftcCmPpOWg. Acesso em: 06/05/2023.

17 Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/543577-antt-propoe-revisao-quinquenal-de-contratos-de-concessao-de-rodovias/. Acesso em: 06/05/2023.

18 Disponível em: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/antt-abre-audiencia-publica-sobre-o-rcr-3. Acesso em: 06/05/2023.

19 “Art. 165. A repactuação de investimentos e parâmetros de serviço poderá ser processada a em intervalos entre 5 (cinco) e 10 (dez) anos de vigência do contrato de concessão, de ofício por iniciativa da Superintendência competente, para inclusão, alteração, reprogramação ou exclusão de obras e serviços ou alteração de escopo, parâmetros técnicos e de desempenho previstos no contrato de concessão.”

20 Relatório de Análise de Impacto Regulatório da Proposta de Regulamento de Concessões Rodoviárias que disciplina a gestão econômico-financeira dos contratos de concessões da ANTT (SEI Nº 10406897/2022).

21 “Art. 13. O regime de recuperação regulatória poderá abranger as seguintes medidas, entre outras necessárias à viabilização da concessão: I – reprogramação de obrigações vencidas e vincendas; II – antecipação ou diferimento de incidência de débitos e créditos acumulados; III – antecipação de receitas tarifárias; IV – suspensão dos atos de cobrança de multas aplicadas transitadas em julgado; V – suspensão da aplicação de novas penalidades pelo descumprimento de determinadas obrigações; VI – desconto de até 30% (trinta por cento) sobre o montante total de multas aplicadas; VII – prorrogação do prazo da concessão; VIII – transferência de controle societário da concessionária”

22 Disponível em: https://www.agenciainfra.com/blog/solucao-para-rodovias-concedidas-na-3a-etapa-deve-ser-uma-das-prioridades-da-infra-s-a/. Acesso em: 06/05/2023.

A legalidade realista no direito administrativo sancionador

Por Alice Voronoff e Juliana Bonacorsi de Palma

Artigo publicado originalmente na coluna Fumus Boni Iuris do portal O Globo.

A legalidade é sem dúvida um dos princípios mais badalados e controversos nas prosas jurídicas. Não que se duvide de sua importância para o Estado Democrático de Direito. Mas em alguns campos, seu sentido e alcance ainda estão sujeitos a um enorme grau de incompreensão. Este artigo busca justamente provocar reflexões sobre o sentido da legalidade no direito administrativo sancionador. Em uma pergunta: a experiência prática pode trazer alguma ordem de limitação ao poder de o Estado punir? E nada melhor do que fazê-lo a partir de problemas hipotéticos, numa espécie de convite ao leitor para que teste suas convicções. A eles.

Problema n. 1: caso do cachorro no parque. Na cidade Feliz, há um belo parque municipal no qual uma placa avisa: “Proibida a entrada de animais. Infração sujeita a multa administrativa”. Felícia se mudou para a cidade Feliz há cerca de 3 anos e passou a morar em um apartamento com vista para o parque. Desde então, observa que muitas pessoas frequentam o parque com seus bichinhos de estimação e, curiosa, resolveu perguntar aos usuários se já haviam sido multados. Todos responderam negativamente e frisaram que isso jamais ocorreria porque a cidade Feliz seria historicamente um lugar amigo dos animais. Mais segura, Felícia comprou um cãozinho e resolveu passear com o novo amigo no parque. Qual não foi a surpresa quando, alguns dias depois, recebeu uma notificação de infração para que pagasse multa por desobedecer à proibição constante da lei municipal de ordenação dos parques urbanos. Pergunta-se: é legítimo o auto de infração lavrado contra Felícia?

Problema n. 2: caso da mudança de interpretação. A empresa Eficiente celebrou contrato de PPP com o município Moralidade, na modalidade de concessão administrativa, para construir e administrar determinado hospital municipal. De acordo com o contrato, a concessionária está sujeita à aplicação de multa sempre que for constatada fila de espera para internações com 10 ou mais pacientes por pelo menos 3 vezes no mesmo mês. Diz o contrato, contudo, que a penalidade deixará de ser aplicada nos casos de aumentos de demanda gerados por surtos virais classificados como graves. Assim foi que, no ano de 2010, verificado o gatilho contratual por conta de um surto de gripe, a empresa Eficiente deixou de ser punida com base na cláusula de exceção prevista no contrato. Em 2015, deflagrado novo gatilho de demanda em razão de um surto de gastroenterite, a empresa mais uma vez invocou a exceção contratual e não foi sancionada. Mas em 2020, após um aumento exponencial da demanda hospitalar em razão de novo surto de gripe, o pedido de aplicação da exceção foi rejeitado. Segundo o ente municipal, o conceito de “surto viral grave” seria indeterminado e, por isso, passível de reinterpretação no tempo. Logo, à luz do conhecimento científico mais recente, haveria elementos para se retirar a gripe da categoria de virose grave. No máximo, de gravidade média. Por conseguinte, se imporia a aplicação da penalidade contratual.

Problema n. 3: caso do prefeito expansivo. No município da Alegria, Seu João montou uma pequena lanchonete para incrementar a renda familiar. Ele sabia que, de acordo com as normas de ocupação do solo urbano, não poderia colocar mesas e cadeiras nas calçadas para servir sua clientela. Mas desde que o prefeito Felicidade assumiu o comando do Poder Executivo, passou a dizer publicamente que tais regras seriam contrárias aos interesses da população. Afinal, as mesinhas expandiriam os espaços de lazer da cidade e todos ganhariam em bem-estar. Incentivado pelas declarações públicas do prefeito, Seu João colocou 5 mesinhas em frente à sua lanchonete, como o fizeram outros comerciantes. Quatro anos depois, contudo, recebeu diversas autuações da Secretaria Municipal da Ordem Pública pelo descumprimento flagrante da legislação vigente. Perplexo, Seu João procurou o ex-prefeito para resolver esse absurdo, mas não teve sucesso. Segundo Felicidade, as regras seriam válidas e nunca teriam sido revogadas ou anuladas, apesar de considerá-las de mau gosto.

São três casos que podem ser resolvidos à luz da legalidade. Mas dependendo do sentido que se atribua ao princípio, as respostas serão diametralmente opostas.

No sentido formal, de uma legalidade positivada, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João devem ser sancionados. Trata-se da aplicação da legislação tomada como uma fotografia: a imagem estática daquilo que consta dos códigos. A isso se poderia adicionar um argumento de autoridade: a natureza vinculada da atividade sancionatória da Administração Pública. Descumprida a regra formal, cabe ao administrador aplicar a consequência prevista no comando jurídico, sob pena de prevaricar. Isso, frise-se, independentemente de comparações com casos ou momentos diversos.

Já se o leitor trilhar pela legalidade material — i.e., a legalidade enquanto juridicidade, como vinculação ao ordenamento jurídico, incluindo a normatividade constitucional —, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João não podem ser sancionados. Nos três casos, porque o comportamento da Administração Pública não pode ser ignorado. Como num filme, ele importa. Mais do que isso, ele integra o sentido de legalidade. No primeiro caso, a omissão da prefeitura por um tempo considerável criou em Felícia a percepção de que entrar com animaizinhos no parque era a regra na cidade Feliz, e não o contrário. Como ela poderia pensar de modo diverso, se ao longo de pelo menos três anos todos os seus vizinhos e frequentadores levaram seus cães, gatos e bichinhos ao parque? No segundo caso, a empresa Eficiente tinha exemplos de situações pretéritas vivenciadas ao longo da execução contratual em que o Poder Concedente claramente manifestou seu entendimento a propósito dos surtos virais, incluindo os de gripe. Poderia ela ser surpreendida com a sanção em situação análoga, sob o pretexto de aplicação de um entendimento até então jamais externalizado pela Administração Pública? No terceiro caso, as declarações públicas do chefe do Poder Executivo, seguidas do apoio das autoridades à ocupação das calçadas, gerou em Seu João a convicção de que a proibição teria sido superada. Pode-se afirmar que ele agiu de má-fé, com a intenção de descumprir as regras de ocupação do espaço urbano?

Enfim, a questão é saber se há resposta certa a cada um desses problemas, ou se a beleza do Direito consiste justamente na pluralidade de raciocínios legítimos que possam ser desenvolvidos. A nosso ver, há resposta certa: apenas o sentido material de legalidade resolve legitimamente tais casos. É que não há legalidade possível sem previsibilidade. O poder de punir da Administração Pública pressupõe que os particulares conheçam com clareza as condutas que lhe são vedadas ou exigidas. E isso não se verifica nas três situações hipotéticas analisadas. Seja pelo costume de o Poder Público tolerar o descumprimento da lei, na primeira delas; pela mudança de interpretação, na segunda; pelas declarações públicas de cunho orientativo, na terceira. A verdade é que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João foram legitimamente induzidos a acreditar que se comportavam em conformidade com o ordenamento jurídico.

Apenas o sentido material da legalidade considera a realidade. E há muitas formas de a Administração Pública — a maior intérprete do Direito — modificar o mundo dos fatos: práticas, costumes, precedentes, orientações, tolerâncias, decisões, atos de execução material, omissões etc. Leis, decretos e regulamentos são documentos com textos escritos. Sem se conectarem com a realidade, nada são. A norma jurídica é a interpretação que se confere ao texto normativo diante de uma situação concreta, que também compreende as várias expressões da Administração Pública.

Ao levar seu cachorro ao parque, Felícia cumpriu com a norma de admitir cachorros no parque fruto da tolerância das autoridades públicas, embora o texto legal os proibisse. A empresa Eficiente cumpriu com a norma de compreender “surto viral grave” conforme decisões pretéritas do Poder Público. Seu João cumpriu à risca as orientações do ex-prefeito Feliz, chefe do Poder Executivo e com hierarquia na interpretação normativa. Esses são todos exemplos de conformidade. Por isso afirmar com tanta ênfase que a legalidade formal não foi recepcionada no Direito Administrativo Sancionador, apesar de esta ideia ainda ser forte na cultura jurídica brasileira, levando ao exercício sistemático do poder sancionador de modo ilegítimo e teratológico.

Em rigor, os casos hipotéticos acima sequer são difíceis. Há problemas um tanto mais complexos com os quais se preocupar no direito. Otimizemos nossas energias.